segunda-feira, 4 de maio de 2015

Dia 4 - Monte Roraima de verdade

Não dormira bem aquela noite. Rogers tinha montado a nossa barraca numa pedra íngreme e eu passara a madrugada brigando com a gravidade para não rolar para cima de meu parceiro de tenda, o Carlaile. Além disso, tinha sido uma noite barulhenta. De três barracas, da nossa inclusive, vinham roncos poderosos. Um deles, o mais alto, se assemelhava a um uivo. Era o “Lobo da noite”, um animal que, em meus pensamentos criativos, me obrigou a refletir antes de sair da barraca para urinar. Confesso que fui trêmulo com a lanterna na mão esvaziar o joelho.

 Noite mal dormida numa barraca inclinada e com o "Lobo da noite" à solta

O dia amanheceu mal-humorado. A lua e as estrelas deram vez a um céu cinza, úmido. Não era a neblina eterna do Roraima, mas nuvens carregadas. Tomamos café da manhã com domplin (uma massa muito parecida com o bolinho de chuva), ovo e presunto e melão (nunca comi tanto melão), Marcelo Beck fez as vezes de “porteiro do esqueminha do banheiro” e, já prontos, o pessoal começou a apresentar seus trajes de chuva.

O domplin é mais uma iguaria da viagem. Misturado com ovo, presunto e queijo fica muito bom

Desfile no Roraima

Não curti muito meu poncho desengonçado da Quechua. Ele não abraçava bem a mochila nas costas e atrapalhava ao caminhar. Mais a vontade, estava a professora da Unir, a cascavalense também radicada em Cacoal, Sonia Mara Nita, ou Soninha Neon. Ela usava um conjunto impermeável toda rosa e podia ser vista de longe. Seu cachecol e vestuário em geral passou a ser símbolo de luxo e requinte no Monte Roraima. Mais até que a loja “Chic’s by Cláudia”, outro produto de Cacoal. Já o biólogo Marcelo Soares vestia um sobretudo da Marinha. Um sinal claro de elegância e poder.

Modelitos de chuva. Soninha chamou a atenção com seu estiloso conjunto rosa

Não estávamos ali para aula de moda (ou estávamos?) e partimos para caminhada úmida. O objetivo era cruzar o Roraima em sua extensão maior, passando pela fronteira entre Brasil e Venezuela e parando no Hotel Quati, já em solo tupiniquim. Uma longa caminhada.

O dia mais cansativo de caminhada - quinze quilômetros em seis horas

Névoa eterna

Foram seis horas de caminhada e 15 quilômetros percorridos. Conhecemos o monte de verdade, da topografia alienígena ao clima indeciso, com aquela neblina úmida e fria com intervalos de tempo quente e sol forte. Prevaleceu o tom cinza. Antonia explicou que a umidade é formada nas florestas tropicais do Brasil e da Guiana. Ela escala como se tivesse garras as paredes dos tepuis e atinge quem está no topo. O vão entre o Roraima e o Kukenan sente bem este efeito. Ali, a névoa é eterna.

Sobre a topografia, Roraima é surpreendente. O planalto do Monte é composto por arenito, uma rocha sedimentar formada no período Proterozóico, entre 1,7 e 2 bilhões de anos atrás. A formação compunha boa parte do planalto das Guianas, mas com as erosões e movimentos tectônicos nos últimos 180 milhões de ano, só sobraram os tepuis. No Roraima, a erosão do vento e da água é responsável pelos monolitos das mais curiosas formas.

O alienígena solo do Monte Roraima com suas pedras esculpidas pelo vento

Geologia, clima e biodiversidade. Tudo é interessante numa simples caminhada. Tensing nos mostrou as plantas típicas do topo da montanha. O guia venezuelano de menos de 30 anos é um apaixonado pelo assunto. Já acompanhou um sem-número de biólogos do mundo todo no tepui Roraima. Até os desenhistas da animação Up - Altas Aventuras foram guiados por ele. Com o apoio de biólogos, Tensing planeja fazer um catálogo científico sobre as plantas do Monte Roraima. Eu quero comprar.

A rosa de Roraima (Bejaria imthurnii), uma das várias plantas de Tensing

A paixão pelas plantas toca fácil quem ouve Tensing com atenção. E nos faz reparar melhor no tepui. Cada centímetro quadrado daquela formação imensa mostra uma biodiversidade muito rica para os olhos mais cuidadosos. São várias plantas insetívoras endêmicas, como a vermelha Drocera roraimae com seus filamentos pegajosos, ou as do gênero Helianphora em formato de copo. Algumas do gênero Utricularia são diferentes no topo e na Gran Sabana.

Dia de chuva e um sobe e desce interminável das rochas

No passo de Tensing, subimos e descemos rochas. Algumas vezes tivemos que escalar pequenos trechos de parede. Em outras, escorregamos em grandes pedras. Foi um caminhar mais lento, parando toda hora para um ajudar ao outro aqui e ali. Ao final do dia, Marli reclamaria da propaganda da Roraima Adventures de que “qualquer um pode fazer isso”. Não pode. É preciso um mínimo de preparo para subir o Monte. Sorte que Marli e os outros 13 do grupo tínhamos este preparo.

Devolva meus cristais!

Parada para o lanche próximo ao Rio Arabopo. Após cruzá-lo, voltamos ao Brasil

Depois da parada do lanche no Rio Arabopo, que marca a divisa entre Brasil e Venezuela, chegamos ao Vale dos Cristais, um corte na montanha que deixa à mostra milhares de pedaços de cristais de quartzo branco, com suas seis faces. A visão é tentadora. Muitos levam o cristal no bolso para expor em alguma prateleira de casa. Não sou adepto à depredação e também não queria provocar o tepui. Tensing contou alguns relatos de pessoas que sofreram de dores durante a viagem ao tentar carregar uma pedra destas para a casa. Era o Monte Roraima reclamando seus cristais de volta.

O Vale dos Cristais com seus veios de quartzo. Se você levar algum, o tepui reclamará

Nossa chegada ao Hotel Quati foi debaixo de chuva. As barracas já estavam montadas e o piso era mais agradável, de areia, longe daquela rocha dura, fria e angulosa do Hotel Guácharo. Estava molhado e precisava tirar a bota. Baixei a mochila, me esgueirei em uma cachoeira fina para tomar um banho rápido sem precisar ir ao lago. Os pés eram um maracujá branco. Precisava me esquentar.

Parada no Vale dos Cristais

O hotel tem a área de barracas, o espaço para a cozinha e uma espécie de jardim de inverno, onde podemos sentar e pegar um solzinho. Fiquei por lá, na banquetinha verde, deixando os pés e a bota tomarem um sol. O pessoal foi pendurando roupas e calçados por ali. “Tudo bem”, dizia eu. “Só não faça sombra na minha bota”.

Numa caminhada, o importante é manter a bota seca. Qualquer nesga de sol tem que ser aproveitada

O outro grupo chegou bem depois. Eles tinham feito um caminho menor, passando por outros atrativos. Estávamos já do lado de fora do hotel, secando as roupas ao sol que batia nas pedras, quando Borracha chegou com Eleonice dal Magro, a Léo, também professora da Unir, de Cacoal. Dias depois, ela falaria em tom de brincadeira: “Não sei se vou me acostumar a andar sem segurar na mão do Borracha!”

O Quati é um dos hotéis mais simpáticos. Com a areia dá para moldar melhor o saco de dormir no chão

O jantar foi naquela rodinha de sempre. Fazia mais frio que o costume no alto do Roraima e juntamos os banquinhos verdes em uma roda pequena para nos aquecermos uns aos outros. Como não tinha espaço para todo mundo, alguns sentaram no chão. Mas bem juntinho.

Depois da longa e úmida caminhada, fim de tarde com sol para se secar 

Quem somos nós?

Aproveitamos a aproximação para contarmos como cada um chegou ali. Já sabíamos que Alice e Veridiana tinham aproveitado um desconto de 30 reais na passagem Manaus - Boa Vista quando tiveram a ideia da expedição. E os outros? Andri, que mora metade do ano em Barcelona e a outra metade em São Paulo, aproveitou seu tempo no Brasil para fazer a expedição. Luciana é aventureira quase por profissão. Tempos antes, subira a escadaria até a Cidade Perdida, na Colômbia, e relaxara na praia de Alter do Chão, em Santarém.

Antes de o dia acabar, sol para secar as roupas

Eu expliquei que estava ali por um desencontro de agendas. Tiraria as férias com a Erica, minha noiva, em dezembro. A ideia era visitar de carro algumas cidades históricas mineiras. Mas ela não pôde sair em dezembro e eu fui obrigado tirar férias em janeiro. Como o início do ano não é uma boa época para sair de carro pela estrada, adiamos nossa viagem a dois e eu fui sozinho para um lugar que ela certamente não iria.

Com su permiso, Tensing cuida da logística

Michela começou a contar a história do casal e, como Marcelo não estava junto, chamamos por ele. “Peraí, que eu tô num procedimento aqui”, respondeu do esqueminha do banheiro. O casal se conheceu ainda na época da faculdade. A turma de Marcelo era muito competitiva, mas o moço era o boa praça do pessoal, ajudando com explicações quem precisava de nota. Foi assim que conheceu Michela e que, anos depois, a convenceu a subir aquela montanha gelada. Michela batia o queixo de frio todas as noites na barraca. Mas teria volta. “A próxima viagem vai ser para Paris”, cobrou. Quando dávamos pilha para Michela, ele respondia: “Macho, não brinca com isso não!”.

O papo estava bom, mas era hora de dormir.

Dicas deste post
- Travesseiro não é objeto de luxo para quem vai dormir sobre a rocha fria do Hotel Guáchero. Você pode pegar as suas roupas, amarrar com uma corda e improvisar o travesseiro.
- Eu teria levado também um protetor auricular por causa dos roncos do companheiro de barraca e dos vizinhos. Mas é que eu sou chato pra dormir.
- Se você for friorento, uma manta térmica pode ajudar (eu não usei a minha). O saco de dormir ideal é o 0º C conforto.
- Para o frio, aliás, leve uma segunda pele (estas blusas finas que ficam bem presas ao corpo).
- Deixe as coisas a mão na barraca. A lanterna bem do lado do saco de dormir. Recomenda-se levar uma lanterna de cabeça também.
- De novo sobre a capa de chuva: prefira as estilo conjunto. Os ponchos ou parkas ficam prendendo nas pernas. Também é interessante ter uma jaqueta corta vento sob a capa.
- Aproveite cada fim de tarde com sol para secar suas roupas. Ele pode ser o último de toda viagem.
- Faça turismo responsável. Não leve os cristais do morro. Recolha seu lixo!
- As caminhadas são mais amistosas ou ligeiras dependendo se está chovendo ou não. Mas com chuva ou sol, não deixe de observar as formações rochosas e as plantas do Roraima.

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