quarta-feira, 28 de outubro de 2009

No sol e na ilha, mas sem Paceña

Terra onde nasceu o primeiro líder inca, Manco Copac, a Ilha do Sol exala história. Uma mistura de lindas paisagens e muita, mas muita cultura inca – além da de seus antecessores, os tiwanacu. Ali, na fronteira com o Peru, o lago Titicaca e sua mais bonita ilha dava uma sugestão de o que viria pela frente.

Paisagens fantástica e muita história, a Ilha do Sol era uma mostra de o que a viagem nos prometia

Mas antes, fotos. A Ilha do Sol é repleta destas fotografias reais, loucas para ser digitalizadas por objetivas. A nossa Estocolmo sulamericana, só para manter as comparações entre o Especial Andes e o Tour pela Europa. “Para onde apontar a objetiva e disparar a câmera a foto ficaria boa”.

A briga entre mulher e gado, e uma chola solitária. Conhecemos também a população local

Logo no desembarque, o sol apareceu e iluminou a paisagem. O azul do céu e do lago ficou mais bonito, o povo local, seus hábitos, sua cultura, tudo ficou mais bonito. Mais fotografável. “Misma foto, Murilo”. A frase-chavão seria repetida muitas vezes aquele dia.

Pelos caminhos, ovelhas, pastores e lhamas

Nosso guia local cantava malemal no idioma castelhano. Falante de aimará, o idioma dos antigos tiwanacu, ele se esforçava para se fazer entender. E sacrificava uns “oquei” no fim das frases. Mas foi proveitoso, nos ensinou sobre a ilha, sua geografia e sua história.

Vendedora de brincos e artesanatos, uma argentina que escolheu a ilha para viver

Falou, por exemplo, das crianças que vivem na parte sul da ilha e precisam caminhar 40 minutos para chegar ao norte, estudar. Ou sobre os tiwanacu que foram conquistados pelos incas, e dos incas que perderam tudo para os espanhóis. Estes últimos descerem a lenha, saquearem e fizeram a festa – dos templos lotados por fina cerâmica e metais preciosos, só conhecemos as ruínas.

Os rituais dos antigos moradores ainda são praticados nesta mesa de pedra

Nosso guia nos contou, ainda em seu castelhano arrastado, sobre o festival aimará, celebrado em 21 dias de julho. Uma lhama é sacrificada, seu coração arrancado e dedicado ao sol e à lua, e seu corpo e louvado à terra, a Pacha Mama. Pobre lhama.

Caminhos, longos caminhos por uma ilha cheia de surpresas

Ao conhecimento histórico, acrescentamos uma boa caminhada. Uma americana se juntou a nós e fomos ouvindo o que ela tinha a acrescentar sobre a história. A cada informação relevante, eu dizia: “Dá mais água pra ela”. A menina não parava.

Mulher sem face (o flash falhou) e o "ahora me pagas" sendo praticado nos pedágios da ilha

Subimos e descemos montanhas. Cruzamos com paisagens azuis, lhamas, pastores e suas ovelhas, ruínas e muita gente local, principalmente nas divisas das partes da ilha: a cada passagem, tínhamos que pagar pedágio de 5 bolivianos. A frase símbolo da Bolívia, “Ahora me pagas”, nunca esteve tão presente.

Barco solitário no 'mar' Titicaca

Sem Pacena

Fomos os últimos a subir no barco, que já nos aguardava do outro lado da ilha. A Isla del Sol era um aperitivo da cultura inca, apenas o começo. Mas em matéria de beleza, tínhamos alcançado o ápice da viagem. Ainda paramos nas turísticas “Islas flotontes”, um meio metro quadrado de palha, ocas e barcos onde os turistas subiam e pagavam para tirar fotos. A definição se resume em uma palavra de Marco: “Malísimas”.

Malísimas. Não saímos do barco para fotografar as Islas Flotantes. E na despedida de Ben, ficamos sem Paceña.

Em Copacabana, de novo tínhamos pressa. Nosso ônibus sairia para Cusco, mas Ben não iria conosco. Marco e eu rumávamos em direção ao Peru; Ben retornava a La Paz e depois à Argentina. A sociedade estava desfeita e, pela pressa, não conseguimos sequer tomar uma Paceña para brindar nosso amigo norte-americano.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Sol na Isla del Sol

Mal chegamos à ilha e o tempo abriu. A Isla del Sol não tinha aquele nome de graça.

Frustrados, acordamos em nosso segundo dia em Copacabana. Embora estivéssemos bem de estômago, benção da sopa de quinua da noite anterior, o tempo não correspondia. Chovia muito em Copacabana, mas não poderíamos ficar mais um dia na cidade. Arrumamos nossas coisas no hostel e buscamos um dos vários tours até a ilha. Tempo para tomar um café rápido – ou nem isso.

Dia cinza, mas não teve outra. Entremos no barco e enfrentamos o Titicaca

Estávamos na correria. Dia escuro e o barco ameaçando sair. Deixamos as mochilas em Copacabana e embarcamos. Àquela hora, o Titicaca parecia um mar cinza. “Como vamos à ilha do sol se não há sol?”, virou piada fácil. Entre turistas e moradores locais, iríamos conhecer uma das mais famosas ilhas do lago.

À deriva: no meio da viagem o Titicaca parece mar

O Lago Titicaca está localizado a 3.820 metros acima do nível do mar – é o lago navegável mais elevado do mundo. Tem 8.300 mil km², perdendo em superfície, na América do Sul, apenas para o Maracaibo, na Venezuela. Ele é formado pelo degelo dos Andes, canalizado por 25 rios. São 41 ilhas, muitas delas povoadas. Como a Isla del Sol.


Frio e chuva. Mas nosso piloto conhece o Titicaca como ninguém

Mas para chegar a ela, encaramos duas horas de lago. No meio do trajeto, a noção de horizonte se perdia - era como se tivéssemos à deriva. Fazia um friozinho, o tempo estava feio. Só o piloto do barco se aventurava no relento. Com o pé, mas protegido por um guarda-chuva, ele nos guiava pelo lago.


Turistas e moradores locais. Cada qual com sua mania

Conhecemos alguns turistas, como uma falante norte-americana e duas argentinas. Vi uma família de colombianos, que visitava o lago pela primeira vez; a filha obesa brincava no balançar do barco. “Estoy boracha”, repetia. Também notei um chola bordando uma manta, com a ajuda do esposo e da mãe. Cochichava com as vizinhas em aimará, idioma tão antigo quanto o quechua, dos incas.



Mas a ilha já estava próxima. Saímos para ver o aproximar das rochas, e nos acotevelamos no segundo andar do barco. Já não fazia mais frio e o cinza dava lugares a pequenos nuances de cores. As nuvens negras foram se extinguindo e, como num milagre, assim que chegamos à Isla del Sol, o sol apareceu.


Chegada na Isla del Sol (foto de Ben)

O passeio prometia.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Chuva em Copacabana

O dia amanhecera chuvoso em Copacabana. “¡Que mala suerte!”, esmurrava a parede o irado Marco. Tinha razão, havíamos perdido um dia de passeio devido a nossos estômagos revoltos. Não perderíamos outro por culpa do tempo. Pegamos o barco assim mesmo.

Quando chegamos em Copacabana, esperávamos passar apenas um dia. A noite, logo que o ônibus nos deixou na praça central, buscamos hostel barato, algo com leito e baño caliente, ‘no más’. Pechinchamos que é o diabo, e depois, entre nós, rimos. "Está muito barato”. Naquele pouco tempo na orla do Titicaca, eu poderia conhecer melhor os dois novos amigos.



Na TV, só se falava do badalado carnaval de Oruro, que aconteceria naquela semana. Flash ao vivo da cidade, tomadas das fantasias e máscaras, dança, música e um mundaréu de turistas, tudo sob o patrocínio da maior cervejaria da Bolívia. “Paceña, es cerveja!”, dizia o slogan, outro bordão que nos acompanharia.

Ben, com seu humor ácido, ria-se todo. “És una obviedad”, dizia, achando graça o slogan de uma cerveja dizer que ela “é cerveja”. Meu amigo americano se divertia com os meninos gritando o destino das conduções, em La Paz, e com as vendedoras e suas roupas de alpacas purisimas. Era o jeito Ben de ser.

Tempo para fotos da orla do Titicaca. Algumas conceituais

Já Marco, como eu, é louco por fotos. Naquela noite, trocamos primeiras impressões sobre nossas máquinas, falamos sobre fotometria, enquadramento e por aí vai. Se no Chile tive uma pequena disputa com Sidney pelo melhor clique das lhamas, no resto da viagem, Marco seria meu grande oponente. “Mesma foto, Marco!”. Mais um bordão.

Na orla também é lugar para silhuetas. De patos e senhores

Foi com o argentino que acabei ficando mais próximo. Lembro de ter me perguntado se seriam eles meus novos parceiros de mochila, logo que os conheci na van, em Potosí. Seriam. Sem Ben, Marco e eu jantamos pizza aquela noite, e conhecemos um pouco sobre um e outro. Mas então veio a tal noite do exorcismo...

Simpáticos cães. Esta o Marco não fez

No outro dia, ficamos de molho. Decidimos que não adiantaria pegar o barco em direção à ilha, convalescentes como estávamos. Pela manhã, queríamos chá de coca para aliviar o estômago e algo leve para comer. Nem pensar em huevo, leche ou mantequilla. Marco e eu passamos por lan house, enquanto Ben dormia até mais tarde.

Sombra negra de uma igreja branca

Foi dia para conhecer melhor a cidade, sua igreja Nossa Senhora de Copacabana toda branca na praça central, as ladeiras, as bancas de artesanato e a orla do lago. Tiramos fotos de paisagens e de pessoas, pedalinhos em forma de patos, silhuetas de bolivianos, crianças jogando bola e simpáticos cães. Ou o que mais cabia no visor da máquina fotográfica. “Murilo, mesma foto”, respondia Marco.

Futebol no Titicaca. Um dia de boas fotos

O dia passou voando e pagamos mais uma noite no hostel barato. Nos preparamos para uma noite tranquila, sem idas e vindas, revertérios estomacais ou exorcismos. Tomamos os três uma sopa de quinua em um restaurante bacana - encontrei uns conterrâneos e Marco riu do fato de nós brasileiros nos enterdermos tão bem. Naquela noite, ufa, dormimos bem. Para acordamos com o barulho da chuva na outro dia.

“¡Mala suerte!”, voltou Marco a esmurrar a parede, ferindo os nós dos dedos. Iríamos à Isla del Sol assim mesmo.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Exorcismo em Copacabana

O Ben não estava nada bem quando chegamos ao restaurante. Pálido, tinha as pálpebras pesadas. Passava mal. “Vou voltar para o hostel, não estou me sentindo bem”, disse em seu castelhano de norte-americano. Ben voltou, e Marco e eu jantamos uma pizza. O restaurante de “parejas” tinha mesinha à luz de velas e todo cheio de clima. E o argentino e eu ali sentados um de frente para o outro. Rimos muito disso, mais tarde.

Vítima 1: Ben nem comeu a pizza com Marco e eu. Foi direto para o hostel logo que começou a passar mal

Mas quando voltamos ao hostel o clima não era de risadas; Ben se encolhia na cama. Tinha ido ao banheiro e voltado dele um punhado de vezes e já não lhe sobrava nada no estômago. Suspeitava que a causa fosse o mal da altitude, mas já passáramos por lugares mais elevados, não deveria ser. Marco e eu fomos dormir preocupados pela saúde de Ben. Nem imaginávamos o que nos aguardava.

Vítima 2: Marco e eu estávamos preocupados por Ben. Mas Marco também passou mal. De manhã chamava pelo irmão 'Franco' e pelo amigo 'Mineiro'

Foi Marco o segundo a ir ao banheiro. Vomitou até a alma, o coitado. Pensei “vou ter que cuidar desse argentino e desse americano”, tentando controlar um mal-estar que aos poucos também se apoderava de mim. Meio da madrugada, foi a minha vez. Odeio vomitar. Passamos, os três, uma noite de cão.

Vítima 3: achei que teria que tomar conta dos dois, mas que nada, tive que cuidar de mim. Odeio vomitar. No outro dia ficamos de molho

De manhã, Marco chamava pelo nome do irmão “Franco” e do amigo “Mineiro”. Delirava o argentino. Ben acompanhava o delírio falando frases em inglês. “Pensei que iria morrer”, lembrou Marco tempos depois. Exorcisamos em Copacabana.

O culpado? Noite em Copacabana, noite de exorcismo. Culpa de um desayuno em La Paz. "Leche, maestro?". Deveria ter respondido "no"

Até hoje não sabemos o que nos fizera mal. Deve ter sido algo que comemos no desayuno em La Paz. “Aqui esta, maestro”, lembramos o simpático garçom, agora em tom de ironia. Ben e eu apostamos no omelete, huevo frito e huevo revuelto. “Revolto” ficou nosso estômago no final do dia, mas Marco jura que o problema foi com o leche. A mantequila corre por fora.



Resumo da ópera: perdemos um dia em Copacabana. O sol brilhava, enquanto os três viajantes de estômagos revoltos se escondiam dentro do quarto. A tarde saímos para dar uma volta, comer uma fruta ou tomar um refrigerante. Quando li “pollo frito” em uma placa, meu estômago deu um duplo twist carpado. A piada do dia era se estávamos preparados para huevo frito, leche e mantequilla. Não, não passamos pela “carniceria”...

Nos amarramos mais um dia na cidade. A causa de nosso exorcismo em Copacabana será pra sempre um mistério boliviano.

domingo, 26 de julho de 2009

A caminho do grande lago

Uma das paradas obrigatórias da viagem pelos Andes seria o Lago Titicaca. Não poderia voltar para o Brasil sem um punhado de água para minha coleção. Muitos me recomendaram conhecer o lago mais alto do mundo por Puno, no Peru. Outros tantos me sugeriram seguir para Copacabana. Fui pela segunda dica, e não me arrependi.

Vovó e neta. Bravas, as cholas não se deixam fotografar. Para fazer essa aí, usei uma artimanha: virei a máquina ao contrário (com a lente para trás) e fingi tirar fotos da janela. Ela nem desconfiou...

A viagem foi típica boliviana. Espremido na última poltrona do ônibus entre a janela e as pernas grossas de uma chola gorda, tentei dormir. Em vão. Então, fiquei fazendo caretas escondidas para uma boliviana pequena de traços marcantes. No banco da frente, o Ben teve mais sucesso. Marco, que emprestara os ombros, olhava desconfiado. Culpa do cansaço ou da já grande intimidade entre os dois amigos. Ou as duas coisas.



Pela janela vi as casinhas marrom-acinzentadas de La Paz se tornarem passado. Se comparar as duas viagens, Andes e Europa, La Paz seria a minha Berlim. Uma corridinha pelo centro, olhadela em alguns pontos importantes, uma bate perna aqui e ali. Só.

O azul do Titicaca. Enfim conheci o grande lago

O ônibus corria ligeiro. No aparelho de som logo acima de minha cabeça, a cantora folclórica Nardy Barron entoava seu belíssimo “Vida ya no es vida”, música símbolo de minha passagem pela Bolívia. Ainda hoje, quando ouço, me vem à lembrança essa bonita terra de cholas, coca e lãs de alpaca.



O azul do Titicaca foi ficando mais nítido. Curti aquela sensação gostosa de ver algo pela primeira vez e de, aos poucos, transformar a ideia que você tem de alguma coisa em o que essa coisa de fato é. Contornamos o lago, buscando uma balsa para atravessar o Estreito de Tiquina, que separa a parte menor (Huinaymarca) da maior (Chucuito) do Lago Titicaca. Um pouco mais e nossas malas desceriam do ônibus, já no centro de Copacabana.

Balsas, barcos e três amigos no Estreito de Tiquina

Estávamos cansados. O pescoço de Ben doía das tentativas de dormir. Eu já me acostumara com o aperto, mas queria descanso. Noite, só gstaríamos de hostel, cama e banho quente. Mas aquela noite prometia algo mais.

¡Alpaca purisima!

A vendedora do Mercado de las Brujas defendia seu produto: “És 100% alpaca, purisima”. Aquilo virou jargão entre os três amigos viajantes: “Alpaca purisima”, diríamos muitas vezes. Ou Baby alpaca, ainda de melhor qualidade. Comprei alguns presentes e uma blusa 100% para mim, enquanto tentava imaginar de onde vinham tantas alpacas.

Na calle de las brujas, o famoso mercado. Produtos à base da pobre alpaca

A alpaca (Lama pacos), prima da lhama (Lama lama) e do guanaco (Lama ganicoe), mas apenas amiga da vicunha (Vicugna vicugna), é um camelídeo criado em fazendas no Chile, Peru e Bolívia, ali nas altitudes dos Andes. Como a lhama, a alpaca foi domesticada pelos incas e, ainda hoje, é aproveitada pelo povo andino. Mas enquanto a prima é usada, principalmente, como animal de carga (vide as caravanas de lhamas na época de ouro da mina de prata de Potosí), das alpacas se busca a lã para confecção. Ainda melhor se for puríssima.

Não fui apresentado ao guanaco (à esquerda) e da alpaca (à direita) só conheci a lã. Mas corri atrás de vicunhas (acima) a mais de 4 mil metros e disputei algumas fotos de lhamas (abaixo) com meu amigo Sidnei, no Atacama. É a fauna camelídea da viagem.

No El Tatio, no Atacama, as vicunhas se escondiam entre gêiseres e me faziam perder o fôlego nas dunas. No tour por Uyuni, as lhamas vinham revirar nosso lixo ao amanhecer do dia. Agora, as alpacas comandam. Seríamos lembrados de sua presença a cada mercado de artesanato.

Mercado de las Brujas, bugigangas para todos os gostos. Regalos de viagem

Como no famosíssimo mercado na Calle de las Brujas, atrás da Igreja San Francisco. O mercado é assim conhecido porque, ademais chompas, blusas e pantalones de alpaca puríssima, são vendidos fetos de lhama ressecados e outros artigos místicos usados no ritual da Pacha Mama (outra herança dos incas).



"Copacabana, Copacabana"


Após o fabuloso desayuno americano, caminhamos por La Paz. Encontramos muitos meninos engraxates com seus rostos cobertos por panos negros. “Ellos tienen verguenza por pedir lesmosla”, explicou Ben, comprovando com Marco a pronúncia correta das palavras. “Verguenza” e “lesmosla”, mais duas para meu castelhano de fronteira.

Do mercado, o topo da igreja de San Francisco

O dia, bem da verdade, foi perdido. Fiquei naquela luta eterna de trocar meus pesos chilenos por bolivianos. Ficaria na casa de um amigo do Couchsurfing, mas não fiquei. Marco e Ben ficariam e um hostel com um casal de canadenses que conheceram em Sucre, mas não ficaram. Muitos “nãos” em tão pouco tempo. A mim restava Coroico, o passeio de bicicleta mais perigoso do mundo, montanha abaixo - uma das várias dicas do amigão Daniel, não o catarinense, mas o carioca que conheci em San Pedro del Atacama.

Também não fui.

Isso é Bolívia. Na zona do cemitério, aglomeração de carros e uma parada para o almoço das queridas cholitas. Trabalho duro.

Marco e Ben seguiriam para Copacabana, que também estava em meu itinerário. “E aí Murilo, já se decidiu para onde vai?”, perguntou Marco em castelhano, acentuando o ‘ri’, de Murilo, como sempre faz. Desisti da loucura de Coroico.

Como nas conduções da cidade, os ônibus para fora de La Paz também têm seu destino anunciado pelo motorista.

“Copacabana, Copacabana”, era o grito do motorista indicando o destino da condução. “Copacabana, Copacabana”, mais um bordão que repetiríamos muitas vezes. Juntos, pois eu seguiria viagem por um tempo mais com meus amigos.

domingo, 19 de julho de 2009

Desayuno en La Paz

“Maestro”. Eram com estes modos que o simpático garçom de uma panificadora – meio lanchonete, meio restaurante – nos tratava. Estávamos famintos, surdos para tais esmeros de polidez do atendente. “¿Leche, maestro?”, insistiu. Queríamos comida. Foi assim que desayunamos, logo pela manhã, em La Paz. Café americano – huevo mexido para Ben, huevo revuelto para Marco e omelete para mim.

Desayuno americano - leche e omelete para mim. Não guardaríamos na lembrança apenas os esmeros de polidez do garçom.

Chegamos descansados na capital boliviana. Valera a pena ter pego um ônibus semicama. Dormimos a viagem toda, pernas esticadas, circulação de sangue normal, confortáveis. E sentimos o peso da cidade grande tão logo chegamos nela. Buzinas, pessoas gritando, uma bagunça. Pela janela, vulcões e picos nevados, como o Chacaltaya, a 5.395 metros acima do nível do mar. Cena já não mais inédita, mas ainda impressionante.



A rodoviária de La Paz fica em uma parte elevada. A cidade toda, a propósito, tem uma geografia bastante acidentada. Enquanto a periferia está a 4.090 metros acima do nível do mar, o centro nervoso fica em um vale, a 3.630 metros. No meio disso, ruas e casas se equilibram pelas encostas.

La Paz está em uma encosta. E por lá, vive a onipresença de um tal Evo Morales. Resquícios do referendo.

Pegamos nossa bagagem e fomos bater perna descendo ladeira sem um plano definido. Respiramos La Paz acordando. E, a despeito do horário ainda cinzento, o centro já estava agitado. Com uma mapa nas mãos buscamos hostel, e passamos por pontos importantes da cidade.

Centro nervoso. Em frente à igreja São Francisco, na 16 de julho, o comércio já come solto.

Pela avenida 16 de julho, a principal via de La Paz, passam várias conduções. São vans e kombis, que cobram menos de dois bolivianos para levar os passageiros de norte a sul da cidade. Ou vive-versa. Os carros andam com as portas abertas e com meninos gritando a pleno pulmões o destino da ‘linha’. “Cemitério, cemitério”, por exemplo.

Na Plaza Murillo, a estátua do mártir fica voltada para Catedral Metropolitana.

“Não entendo”, questionava Ben. “É como se alguém comprasse uma kombi e saísse oferecendo o serviço de transporte”, raciocinou com sua cabeça de norte-americano. Ri também, mas sei que em várias cidades do Brasil acontece o mesmo. Não há itinerário, não há mapa das poltronas do ônibus, não há sinalização nas vias. Mas há buzina, gritos e barulho.

Ao fundo, rosado, o Palácio Legislativo. Mas outra coisa me atraiu à praça.

Aproveitamos para conhecer a Plaza Murillo, a mais importante de La Paz. Queria conhecer a tal praça, não por sua relevância político-administrativa, mas pela curiosidade do nome. Quem seria o tal xará de nome grafado no castelhano correto?, pensei. Não costumo divulgar muito, mas Murillo (assim mesmo com dois Ls) significa ‘muro pequeno’ em espanhol. Dispenso comentários.



Pedro Domingo Murillo foi um revolucionário pacenho que, em 1808, liderou um grupo declarando a independência à metrópole Madrid. O texto original da Proclamação da Junta Tuitiva está gravado em pedra, aos pés de sua estátua, no centro da praça. O fim de Murillo foi trágico - condenado à forca junto com os seguidores, ele gritou as últimas palavras: "Compatriotas, yo muero, pelo la tea que dejo encendida nadie la podrar apagar, ¡viva la libertad!". Na mesma praça, ficam o Palácio Legislativo e a Catedral Metropolitana de La Paz.

Marco e Ben não querem saber de informações turísticas. Querem comida. Eu também.

Estávamos com fome naquela manhã. Não interessava a Marco e Ben aulas de história da cidade. Ao menos não naquele momento. Foi quando encontramos a panificadora com cyber café e desayuno americano. Nos servimos dos dois. “Mas leche, maestro”, tornou a oferecer o garçom em seu traje elegante. Comemos sem culpa. O castigo viria depois.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Em outro ônibus boliviano

Viajar de ônibus nos faz aprender algumas coisas. Minhas idas e vindas para Campinas, por exemplo, foram verdadeiras vacinas. Aprendi escolher a melhor poltrona, fugir de divisórias das janelas ou das asas do avião, assim como me comportar diante de salgados gordurosos, crianças chorosas ou muambeiros que pedem contribuição para a caixinha. Enfim, ensinamentos.

Da Bolívia também trouxe experiências – não economizar dinheiro na escolha do ônibus, principalmente. Há casos, é claro, em que não temos escolha, como foi no dia da tortura. Mas em outros, vale a pena se desfazer de uns bolivianos a mais por uma poltrona mais cômoda.

Meus novos amigos de viagem pensavam o mesmo quando escolhemos o ônibus de Potosí à próxima parada, La Paz. Como Marco e Ben também iriam para a capital, tratei de reservar as três passagens para nós três, na recepção do próprio hostel. Ao menos por mais uma cidade, seguiríamos viagem juntos.

A diferença é pequena, bobagem economizar, disse Ben em outras palavras. Pegamos um táxi, em três sai barato, e seguimos para a rodoviária. Pela janela do carro pequeno, vimos os amigos franceses e suas mochilas nas costas. Iam a pé.

Na rodoviária, aquela bagunça. Atraso dos ônibus e apreensão para saber a qualidade do nosso carro. Minhas pernas latejavam só em pensar na possibilidade de uma outra viagem sofrível. Esperávamos um tal Copacabana MEN, e, a cada vez que um ônibus estacionava, achávamos que era o nosso.

A estação estava apinhada de policiais. Tinha ouvido histórias de que não eram raros os roubos por ali. Cruzamos novamente com os franceses e trocamos uns últimos abraços. Também falei com dois gaúchos que seguiam o mapa boliviano na direção norte.

Marco colocou sua mochila de capa amarelada no chão. Fizemos um montinho. Ben foi buscar uns pães. Fome. Pude conhecer melhor o argentino e o norte-americano. Este mais na dele. Aquele, brincalhão, e de sotaque característico. Os pães chegaram, alguns bons outros nem tanto.

Nosso ônibus também chegou. E, pasme, a viagem foi ótima.

terça-feira, 16 de junho de 2009

A mina de prata

O guia nos mirou nos olhos. Tinha o olhar objetivo e falava sério: “se digo izquierda es izquierda, se digo derecha es derecha”, enfatizava. Estávamos ainda no inicio da mina, iluminados por uma réstia de luz que vinha de fora e pelo amarelo de nossas lanternas de cabeça. Nos preparávamos para conhecer a maior mina de prata do mundo, em Potosí, na Bolívia.

O atento Juan explica sobre a mina. Carrinhos de uma tonelada em uma descida de 25 metros. Sem freio. Os cuidados eram necessários.

A insistência do guia, Juan seu nome, não era gratuita. De fato, entrar na mina significava perigo para nós e para os trabalhadores lá de dentro. Turistas entre bananas de dinamite, carrinhos com uma tonelada de carga, trilhos em descida, operários, e pedra, muita pedra. Juan estava certo.



Antes de entrarmos, paramos para comprar presentes. Nada de doces ou CDs do Djavan. Os mimos são bananas de dinamite, detonadores, folhas de coca, álcool etílico e refresco, itens vitais para o trabalho dos mineiros. Fazem parte do pacote da visita, cabe a nós apenas escolher o que levar.

Antes de entrar na mina, presentes. Artigos fundamentais para os mineiros

Cada dupla com uma sacola. Cada um com sua roupa, bota e capacete munido de lanterna. Uma bateria nas costas para manter a lanterna acessa. Juan trocou a fala pela ação e, andando, começou a nos guiar pelos labirintos úmidos da mina de prata.

Lances, próximos a Sierro Rico. Iria conhecer a mina, e com amigos

Ponte de prata

Diziam os mais entusiastas que seria possível construir uma ponte de pura prata de Potosí à Madri, na Espanha, tamanha a quantidade do metal explorado em Sierro Rico. Exageros à parte, na “época de ouro” (ou de prata) e ainda hoje, a mina de Potosí é a maior do mundo.

Mesma foto. Na lente de Marco, o Sierro Rico. Antes da exploração espanhola, cume da montanha estava a 5 mil acima do nível do mar. Hoje, está a pouco mais de 4 mil.

Nos tempos da colônia, o metal era separado com mercúrio e transformado em lingotes de prata pura. Um rico rebanho, de 100 a 200 lhamas, cada uma com 10 a 12 quilos no lombo, levava o metal até o porto de Potosí, hoje Arica, no Chile. Tudo para abastecer o luxo do então império espanhol.

Entrada estreita e muito cuidado

Hoje a exploração é feita por cooperativas. São 35 delas, cada uma responsável por um lote de minas, entre as 125 ainda ativas, das 350 originais. “Hoy, Sierro Rico no es mas tan rico”, explica Juan. Não se vendem mais prata pura, mas um complexo com estanho, chumbo e zinco. As empresas fazem a separação. Na mina, sete mil mineiros trabalham pesado: de oito a dez horas por dia, com paradas de três em três horas, quando sentem que a coca que mastigam perdeu o sabor.

Os mineiros ficam o tempo todo com a bola de coca na boca

Daí a importância dos presentes que carregávamos nas costas. A coca dá vitalidade, e retira fome, sede e sono dos trabalhadores. Eles maceram uma bola de folhas na boca e dão mordicadas em um catalisador, a lixia, à base de semente de quinua e de anis, que potencializa o efeito da coca. Passam o dia todo sob este efeito. São de 20 a 25 gramas diárias da folha por mineiro. Nas pausas, além da coca, tabaco forte e refresco.

Festa para Zio, o protetor dos mineiros de Sierro Rico

Em uma das paradas conhecemos o Zio. Do santo malvado, da época quando os indígenas eram obrigados a trabalhar para espanhóis, Zio se tornou o grande protetor dos mineiros. O ritual para pedir proteção, menos acidentes e mais minerais, envolve oferta de tabaco e coca, e o trago de álcool 96%. “Se bebo puro, el Zio vá me dar minerales más puros”, acreditam.

Ben experimenta 96% de álcool. De tirar água dos olhos

Enquanto conversávamos, um mineiro parou para nos contar sua história – mais velho dos irmãos, ele teve que assumir o comando de casa, quando o pai faleceu. Assumiu também o emprego do pai. No canto da boca, mascava uma bola de folhas de coca aos bocados. A vida não é fácil em Sierro Rico. Em 2008, 16 pessoas morreram vitimas de explosões, quedas ou gases letais; em 2007 foram 36. Maior que a vontade de conhecer aquela realidade, no interior da mina de prata, é o desejo de sair de dentro dela o quanto antes.

Fim do percurso, ar puro e rarefeito do lado de fora. Segue viagem, e que Sierro Rico cuide dos mineiros que ficaram lá dentro




Foi o que fizemos. Deixamos os mineiros continuar com seu trabalho e puxamos o ar puro do lado de fora. Nunca valorizei tanto aquele ar rarefeito e seco da altitude boliviana. Em Potosí, a missão estava cumprida. Era hora de seguir viagem, mas agora com novos amigos.