domingo, 26 de julho de 2009

A caminho do grande lago

Uma das paradas obrigatórias da viagem pelos Andes seria o Lago Titicaca. Não poderia voltar para o Brasil sem um punhado de água para minha coleção. Muitos me recomendaram conhecer o lago mais alto do mundo por Puno, no Peru. Outros tantos me sugeriram seguir para Copacabana. Fui pela segunda dica, e não me arrependi.

Vovó e neta. Bravas, as cholas não se deixam fotografar. Para fazer essa aí, usei uma artimanha: virei a máquina ao contrário (com a lente para trás) e fingi tirar fotos da janela. Ela nem desconfiou...

A viagem foi típica boliviana. Espremido na última poltrona do ônibus entre a janela e as pernas grossas de uma chola gorda, tentei dormir. Em vão. Então, fiquei fazendo caretas escondidas para uma boliviana pequena de traços marcantes. No banco da frente, o Ben teve mais sucesso. Marco, que emprestara os ombros, olhava desconfiado. Culpa do cansaço ou da já grande intimidade entre os dois amigos. Ou as duas coisas.



Pela janela vi as casinhas marrom-acinzentadas de La Paz se tornarem passado. Se comparar as duas viagens, Andes e Europa, La Paz seria a minha Berlim. Uma corridinha pelo centro, olhadela em alguns pontos importantes, uma bate perna aqui e ali. Só.

O azul do Titicaca. Enfim conheci o grande lago

O ônibus corria ligeiro. No aparelho de som logo acima de minha cabeça, a cantora folclórica Nardy Barron entoava seu belíssimo “Vida ya no es vida”, música símbolo de minha passagem pela Bolívia. Ainda hoje, quando ouço, me vem à lembrança essa bonita terra de cholas, coca e lãs de alpaca.



O azul do Titicaca foi ficando mais nítido. Curti aquela sensação gostosa de ver algo pela primeira vez e de, aos poucos, transformar a ideia que você tem de alguma coisa em o que essa coisa de fato é. Contornamos o lago, buscando uma balsa para atravessar o Estreito de Tiquina, que separa a parte menor (Huinaymarca) da maior (Chucuito) do Lago Titicaca. Um pouco mais e nossas malas desceriam do ônibus, já no centro de Copacabana.

Balsas, barcos e três amigos no Estreito de Tiquina

Estávamos cansados. O pescoço de Ben doía das tentativas de dormir. Eu já me acostumara com o aperto, mas queria descanso. Noite, só gstaríamos de hostel, cama e banho quente. Mas aquela noite prometia algo mais.

¡Alpaca purisima!

A vendedora do Mercado de las Brujas defendia seu produto: “És 100% alpaca, purisima”. Aquilo virou jargão entre os três amigos viajantes: “Alpaca purisima”, diríamos muitas vezes. Ou Baby alpaca, ainda de melhor qualidade. Comprei alguns presentes e uma blusa 100% para mim, enquanto tentava imaginar de onde vinham tantas alpacas.

Na calle de las brujas, o famoso mercado. Produtos à base da pobre alpaca

A alpaca (Lama pacos), prima da lhama (Lama lama) e do guanaco (Lama ganicoe), mas apenas amiga da vicunha (Vicugna vicugna), é um camelídeo criado em fazendas no Chile, Peru e Bolívia, ali nas altitudes dos Andes. Como a lhama, a alpaca foi domesticada pelos incas e, ainda hoje, é aproveitada pelo povo andino. Mas enquanto a prima é usada, principalmente, como animal de carga (vide as caravanas de lhamas na época de ouro da mina de prata de Potosí), das alpacas se busca a lã para confecção. Ainda melhor se for puríssima.

Não fui apresentado ao guanaco (à esquerda) e da alpaca (à direita) só conheci a lã. Mas corri atrás de vicunhas (acima) a mais de 4 mil metros e disputei algumas fotos de lhamas (abaixo) com meu amigo Sidnei, no Atacama. É a fauna camelídea da viagem.

No El Tatio, no Atacama, as vicunhas se escondiam entre gêiseres e me faziam perder o fôlego nas dunas. No tour por Uyuni, as lhamas vinham revirar nosso lixo ao amanhecer do dia. Agora, as alpacas comandam. Seríamos lembrados de sua presença a cada mercado de artesanato.

Mercado de las Brujas, bugigangas para todos os gostos. Regalos de viagem

Como no famosíssimo mercado na Calle de las Brujas, atrás da Igreja San Francisco. O mercado é assim conhecido porque, ademais chompas, blusas e pantalones de alpaca puríssima, são vendidos fetos de lhama ressecados e outros artigos místicos usados no ritual da Pacha Mama (outra herança dos incas).



"Copacabana, Copacabana"


Após o fabuloso desayuno americano, caminhamos por La Paz. Encontramos muitos meninos engraxates com seus rostos cobertos por panos negros. “Ellos tienen verguenza por pedir lesmosla”, explicou Ben, comprovando com Marco a pronúncia correta das palavras. “Verguenza” e “lesmosla”, mais duas para meu castelhano de fronteira.

Do mercado, o topo da igreja de San Francisco

O dia, bem da verdade, foi perdido. Fiquei naquela luta eterna de trocar meus pesos chilenos por bolivianos. Ficaria na casa de um amigo do Couchsurfing, mas não fiquei. Marco e Ben ficariam e um hostel com um casal de canadenses que conheceram em Sucre, mas não ficaram. Muitos “nãos” em tão pouco tempo. A mim restava Coroico, o passeio de bicicleta mais perigoso do mundo, montanha abaixo - uma das várias dicas do amigão Daniel, não o catarinense, mas o carioca que conheci em San Pedro del Atacama.

Também não fui.

Isso é Bolívia. Na zona do cemitério, aglomeração de carros e uma parada para o almoço das queridas cholitas. Trabalho duro.

Marco e Ben seguiriam para Copacabana, que também estava em meu itinerário. “E aí Murilo, já se decidiu para onde vai?”, perguntou Marco em castelhano, acentuando o ‘ri’, de Murilo, como sempre faz. Desisti da loucura de Coroico.

Como nas conduções da cidade, os ônibus para fora de La Paz também têm seu destino anunciado pelo motorista.

“Copacabana, Copacabana”, era o grito do motorista indicando o destino da condução. “Copacabana, Copacabana”, mais um bordão que repetiríamos muitas vezes. Juntos, pois eu seguiria viagem por um tempo mais com meus amigos.

domingo, 19 de julho de 2009

Desayuno en La Paz

“Maestro”. Eram com estes modos que o simpático garçom de uma panificadora – meio lanchonete, meio restaurante – nos tratava. Estávamos famintos, surdos para tais esmeros de polidez do atendente. “¿Leche, maestro?”, insistiu. Queríamos comida. Foi assim que desayunamos, logo pela manhã, em La Paz. Café americano – huevo mexido para Ben, huevo revuelto para Marco e omelete para mim.

Desayuno americano - leche e omelete para mim. Não guardaríamos na lembrança apenas os esmeros de polidez do garçom.

Chegamos descansados na capital boliviana. Valera a pena ter pego um ônibus semicama. Dormimos a viagem toda, pernas esticadas, circulação de sangue normal, confortáveis. E sentimos o peso da cidade grande tão logo chegamos nela. Buzinas, pessoas gritando, uma bagunça. Pela janela, vulcões e picos nevados, como o Chacaltaya, a 5.395 metros acima do nível do mar. Cena já não mais inédita, mas ainda impressionante.



A rodoviária de La Paz fica em uma parte elevada. A cidade toda, a propósito, tem uma geografia bastante acidentada. Enquanto a periferia está a 4.090 metros acima do nível do mar, o centro nervoso fica em um vale, a 3.630 metros. No meio disso, ruas e casas se equilibram pelas encostas.

La Paz está em uma encosta. E por lá, vive a onipresença de um tal Evo Morales. Resquícios do referendo.

Pegamos nossa bagagem e fomos bater perna descendo ladeira sem um plano definido. Respiramos La Paz acordando. E, a despeito do horário ainda cinzento, o centro já estava agitado. Com uma mapa nas mãos buscamos hostel, e passamos por pontos importantes da cidade.

Centro nervoso. Em frente à igreja São Francisco, na 16 de julho, o comércio já come solto.

Pela avenida 16 de julho, a principal via de La Paz, passam várias conduções. São vans e kombis, que cobram menos de dois bolivianos para levar os passageiros de norte a sul da cidade. Ou vive-versa. Os carros andam com as portas abertas e com meninos gritando a pleno pulmões o destino da ‘linha’. “Cemitério, cemitério”, por exemplo.

Na Plaza Murillo, a estátua do mártir fica voltada para Catedral Metropolitana.

“Não entendo”, questionava Ben. “É como se alguém comprasse uma kombi e saísse oferecendo o serviço de transporte”, raciocinou com sua cabeça de norte-americano. Ri também, mas sei que em várias cidades do Brasil acontece o mesmo. Não há itinerário, não há mapa das poltronas do ônibus, não há sinalização nas vias. Mas há buzina, gritos e barulho.

Ao fundo, rosado, o Palácio Legislativo. Mas outra coisa me atraiu à praça.

Aproveitamos para conhecer a Plaza Murillo, a mais importante de La Paz. Queria conhecer a tal praça, não por sua relevância político-administrativa, mas pela curiosidade do nome. Quem seria o tal xará de nome grafado no castelhano correto?, pensei. Não costumo divulgar muito, mas Murillo (assim mesmo com dois Ls) significa ‘muro pequeno’ em espanhol. Dispenso comentários.



Pedro Domingo Murillo foi um revolucionário pacenho que, em 1808, liderou um grupo declarando a independência à metrópole Madrid. O texto original da Proclamação da Junta Tuitiva está gravado em pedra, aos pés de sua estátua, no centro da praça. O fim de Murillo foi trágico - condenado à forca junto com os seguidores, ele gritou as últimas palavras: "Compatriotas, yo muero, pelo la tea que dejo encendida nadie la podrar apagar, ¡viva la libertad!". Na mesma praça, ficam o Palácio Legislativo e a Catedral Metropolitana de La Paz.

Marco e Ben não querem saber de informações turísticas. Querem comida. Eu também.

Estávamos com fome naquela manhã. Não interessava a Marco e Ben aulas de história da cidade. Ao menos não naquele momento. Foi quando encontramos a panificadora com cyber café e desayuno americano. Nos servimos dos dois. “Mas leche, maestro”, tornou a oferecer o garçom em seu traje elegante. Comemos sem culpa. O castigo viria depois.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Em outro ônibus boliviano

Viajar de ônibus nos faz aprender algumas coisas. Minhas idas e vindas para Campinas, por exemplo, foram verdadeiras vacinas. Aprendi escolher a melhor poltrona, fugir de divisórias das janelas ou das asas do avião, assim como me comportar diante de salgados gordurosos, crianças chorosas ou muambeiros que pedem contribuição para a caixinha. Enfim, ensinamentos.

Da Bolívia também trouxe experiências – não economizar dinheiro na escolha do ônibus, principalmente. Há casos, é claro, em que não temos escolha, como foi no dia da tortura. Mas em outros, vale a pena se desfazer de uns bolivianos a mais por uma poltrona mais cômoda.

Meus novos amigos de viagem pensavam o mesmo quando escolhemos o ônibus de Potosí à próxima parada, La Paz. Como Marco e Ben também iriam para a capital, tratei de reservar as três passagens para nós três, na recepção do próprio hostel. Ao menos por mais uma cidade, seguiríamos viagem juntos.

A diferença é pequena, bobagem economizar, disse Ben em outras palavras. Pegamos um táxi, em três sai barato, e seguimos para a rodoviária. Pela janela do carro pequeno, vimos os amigos franceses e suas mochilas nas costas. Iam a pé.

Na rodoviária, aquela bagunça. Atraso dos ônibus e apreensão para saber a qualidade do nosso carro. Minhas pernas latejavam só em pensar na possibilidade de uma outra viagem sofrível. Esperávamos um tal Copacabana MEN, e, a cada vez que um ônibus estacionava, achávamos que era o nosso.

A estação estava apinhada de policiais. Tinha ouvido histórias de que não eram raros os roubos por ali. Cruzamos novamente com os franceses e trocamos uns últimos abraços. Também falei com dois gaúchos que seguiam o mapa boliviano na direção norte.

Marco colocou sua mochila de capa amarelada no chão. Fizemos um montinho. Ben foi buscar uns pães. Fome. Pude conhecer melhor o argentino e o norte-americano. Este mais na dele. Aquele, brincalhão, e de sotaque característico. Os pães chegaram, alguns bons outros nem tanto.

Nosso ônibus também chegou. E, pasme, a viagem foi ótima.