terça-feira, 18 de agosto de 2009

Sol na Isla del Sol

Mal chegamos à ilha e o tempo abriu. A Isla del Sol não tinha aquele nome de graça.

Frustrados, acordamos em nosso segundo dia em Copacabana. Embora estivéssemos bem de estômago, benção da sopa de quinua da noite anterior, o tempo não correspondia. Chovia muito em Copacabana, mas não poderíamos ficar mais um dia na cidade. Arrumamos nossas coisas no hostel e buscamos um dos vários tours até a ilha. Tempo para tomar um café rápido – ou nem isso.

Dia cinza, mas não teve outra. Entremos no barco e enfrentamos o Titicaca

Estávamos na correria. Dia escuro e o barco ameaçando sair. Deixamos as mochilas em Copacabana e embarcamos. Àquela hora, o Titicaca parecia um mar cinza. “Como vamos à ilha do sol se não há sol?”, virou piada fácil. Entre turistas e moradores locais, iríamos conhecer uma das mais famosas ilhas do lago.

À deriva: no meio da viagem o Titicaca parece mar

O Lago Titicaca está localizado a 3.820 metros acima do nível do mar – é o lago navegável mais elevado do mundo. Tem 8.300 mil km², perdendo em superfície, na América do Sul, apenas para o Maracaibo, na Venezuela. Ele é formado pelo degelo dos Andes, canalizado por 25 rios. São 41 ilhas, muitas delas povoadas. Como a Isla del Sol.


Frio e chuva. Mas nosso piloto conhece o Titicaca como ninguém

Mas para chegar a ela, encaramos duas horas de lago. No meio do trajeto, a noção de horizonte se perdia - era como se tivéssemos à deriva. Fazia um friozinho, o tempo estava feio. Só o piloto do barco se aventurava no relento. Com o pé, mas protegido por um guarda-chuva, ele nos guiava pelo lago.


Turistas e moradores locais. Cada qual com sua mania

Conhecemos alguns turistas, como uma falante norte-americana e duas argentinas. Vi uma família de colombianos, que visitava o lago pela primeira vez; a filha obesa brincava no balançar do barco. “Estoy boracha”, repetia. Também notei um chola bordando uma manta, com a ajuda do esposo e da mãe. Cochichava com as vizinhas em aimará, idioma tão antigo quanto o quechua, dos incas.



Mas a ilha já estava próxima. Saímos para ver o aproximar das rochas, e nos acotevelamos no segundo andar do barco. Já não fazia mais frio e o cinza dava lugares a pequenos nuances de cores. As nuvens negras foram se extinguindo e, como num milagre, assim que chegamos à Isla del Sol, o sol apareceu.


Chegada na Isla del Sol (foto de Ben)

O passeio prometia.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Chuva em Copacabana

O dia amanhecera chuvoso em Copacabana. “¡Que mala suerte!”, esmurrava a parede o irado Marco. Tinha razão, havíamos perdido um dia de passeio devido a nossos estômagos revoltos. Não perderíamos outro por culpa do tempo. Pegamos o barco assim mesmo.

Quando chegamos em Copacabana, esperávamos passar apenas um dia. A noite, logo que o ônibus nos deixou na praça central, buscamos hostel barato, algo com leito e baño caliente, ‘no más’. Pechinchamos que é o diabo, e depois, entre nós, rimos. "Está muito barato”. Naquele pouco tempo na orla do Titicaca, eu poderia conhecer melhor os dois novos amigos.



Na TV, só se falava do badalado carnaval de Oruro, que aconteceria naquela semana. Flash ao vivo da cidade, tomadas das fantasias e máscaras, dança, música e um mundaréu de turistas, tudo sob o patrocínio da maior cervejaria da Bolívia. “Paceña, es cerveja!”, dizia o slogan, outro bordão que nos acompanharia.

Ben, com seu humor ácido, ria-se todo. “És una obviedad”, dizia, achando graça o slogan de uma cerveja dizer que ela “é cerveja”. Meu amigo americano se divertia com os meninos gritando o destino das conduções, em La Paz, e com as vendedoras e suas roupas de alpacas purisimas. Era o jeito Ben de ser.

Tempo para fotos da orla do Titicaca. Algumas conceituais

Já Marco, como eu, é louco por fotos. Naquela noite, trocamos primeiras impressões sobre nossas máquinas, falamos sobre fotometria, enquadramento e por aí vai. Se no Chile tive uma pequena disputa com Sidney pelo melhor clique das lhamas, no resto da viagem, Marco seria meu grande oponente. “Mesma foto, Marco!”. Mais um bordão.

Na orla também é lugar para silhuetas. De patos e senhores

Foi com o argentino que acabei ficando mais próximo. Lembro de ter me perguntado se seriam eles meus novos parceiros de mochila, logo que os conheci na van, em Potosí. Seriam. Sem Ben, Marco e eu jantamos pizza aquela noite, e conhecemos um pouco sobre um e outro. Mas então veio a tal noite do exorcismo...

Simpáticos cães. Esta o Marco não fez

No outro dia, ficamos de molho. Decidimos que não adiantaria pegar o barco em direção à ilha, convalescentes como estávamos. Pela manhã, queríamos chá de coca para aliviar o estômago e algo leve para comer. Nem pensar em huevo, leche ou mantequilla. Marco e eu passamos por lan house, enquanto Ben dormia até mais tarde.

Sombra negra de uma igreja branca

Foi dia para conhecer melhor a cidade, sua igreja Nossa Senhora de Copacabana toda branca na praça central, as ladeiras, as bancas de artesanato e a orla do lago. Tiramos fotos de paisagens e de pessoas, pedalinhos em forma de patos, silhuetas de bolivianos, crianças jogando bola e simpáticos cães. Ou o que mais cabia no visor da máquina fotográfica. “Murilo, mesma foto”, respondia Marco.

Futebol no Titicaca. Um dia de boas fotos

O dia passou voando e pagamos mais uma noite no hostel barato. Nos preparamos para uma noite tranquila, sem idas e vindas, revertérios estomacais ou exorcismos. Tomamos os três uma sopa de quinua em um restaurante bacana - encontrei uns conterrâneos e Marco riu do fato de nós brasileiros nos enterdermos tão bem. Naquela noite, ufa, dormimos bem. Para acordamos com o barulho da chuva na outro dia.

“¡Mala suerte!”, voltou Marco a esmurrar a parede, ferindo os nós dos dedos. Iríamos à Isla del Sol assim mesmo.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Exorcismo em Copacabana

O Ben não estava nada bem quando chegamos ao restaurante. Pálido, tinha as pálpebras pesadas. Passava mal. “Vou voltar para o hostel, não estou me sentindo bem”, disse em seu castelhano de norte-americano. Ben voltou, e Marco e eu jantamos uma pizza. O restaurante de “parejas” tinha mesinha à luz de velas e todo cheio de clima. E o argentino e eu ali sentados um de frente para o outro. Rimos muito disso, mais tarde.

Vítima 1: Ben nem comeu a pizza com Marco e eu. Foi direto para o hostel logo que começou a passar mal

Mas quando voltamos ao hostel o clima não era de risadas; Ben se encolhia na cama. Tinha ido ao banheiro e voltado dele um punhado de vezes e já não lhe sobrava nada no estômago. Suspeitava que a causa fosse o mal da altitude, mas já passáramos por lugares mais elevados, não deveria ser. Marco e eu fomos dormir preocupados pela saúde de Ben. Nem imaginávamos o que nos aguardava.

Vítima 2: Marco e eu estávamos preocupados por Ben. Mas Marco também passou mal. De manhã chamava pelo irmão 'Franco' e pelo amigo 'Mineiro'

Foi Marco o segundo a ir ao banheiro. Vomitou até a alma, o coitado. Pensei “vou ter que cuidar desse argentino e desse americano”, tentando controlar um mal-estar que aos poucos também se apoderava de mim. Meio da madrugada, foi a minha vez. Odeio vomitar. Passamos, os três, uma noite de cão.

Vítima 3: achei que teria que tomar conta dos dois, mas que nada, tive que cuidar de mim. Odeio vomitar. No outro dia ficamos de molho

De manhã, Marco chamava pelo nome do irmão “Franco” e do amigo “Mineiro”. Delirava o argentino. Ben acompanhava o delírio falando frases em inglês. “Pensei que iria morrer”, lembrou Marco tempos depois. Exorcisamos em Copacabana.

O culpado? Noite em Copacabana, noite de exorcismo. Culpa de um desayuno em La Paz. "Leche, maestro?". Deveria ter respondido "no"

Até hoje não sabemos o que nos fizera mal. Deve ter sido algo que comemos no desayuno em La Paz. “Aqui esta, maestro”, lembramos o simpático garçom, agora em tom de ironia. Ben e eu apostamos no omelete, huevo frito e huevo revuelto. “Revolto” ficou nosso estômago no final do dia, mas Marco jura que o problema foi com o leche. A mantequila corre por fora.



Resumo da ópera: perdemos um dia em Copacabana. O sol brilhava, enquanto os três viajantes de estômagos revoltos se escondiam dentro do quarto. A tarde saímos para dar uma volta, comer uma fruta ou tomar um refrigerante. Quando li “pollo frito” em uma placa, meu estômago deu um duplo twist carpado. A piada do dia era se estávamos preparados para huevo frito, leche e mantequilla. Não, não passamos pela “carniceria”...

Nos amarramos mais um dia na cidade. A causa de nosso exorcismo em Copacabana será pra sempre um mistério boliviano.