domingo, 3 de maio de 2015

Dia 3 - Licença, paredão. Vamos subir

Eu espirrava, num princípio de resfriado, e a mochila pesava nas costas, quando chegamos ao Hotel Guácharo, no alto do Roraima. Minhas costas ardiam. Estava com um mau jeito próximo da escápula direita. O dia tinha sido longo.

No terceiro dia de caminhada, chegamos ao topo do Roraima

Coube a Tensing puxar a fila em nosso terceiro dia de caminhada. Era dia de subir o monte e faríamos isso em duas partes. Primeiro, passar pela florestinha até darmos de frente ao paredão. Apenas dois quilômetros separam o acampamento da parede, mas a angulação da subida beira os 75º. Na segunda parte, andamos mais um quilômetro, ao lado da parede até chegarmos a uma espécie de escada natural, o único acesso ao topo.

Tivemos sorte com o tempo até então. Não fazia “aquele fenômeno atmosférico úmido sobre o qual não se pode falar”. O céu estava limpo e tínhamos uma fileira de subidas para enfrentar. Agradeci ter comprado o bastão de trekking, que ajudou muito dando um alívio ao joelho nas subidas e equilíbrio nas descidas.

No final da florestinha o início do paredão. Com licença, vamos subir!

Nos primeiros lances, no entanto, abandonei o bastão para usar as mãos. Aquele trecho de terra amarela exigia quase uma escalada. Estava seco, bem diferente de como o encontraríamos na viagem de volta. Tensing a frente parava a todo instante mostrando uma bromélia ou orquídea de flor exuberante. Muitas delas endêmicas. O guia gosta de dizer o nome científico de cada uma. Mas seu conhecimento maior é sobre as plantas do cume do monte.

Com sua licença, paredão!

O pelotão da infantaria chegou cedo ao paredão. Uns 30 minutos antes do esperado. Marly, Jane - que andavam sempre próximas da infantaria - e Veridiana, se juntaram logo conosco. Assim que chegamos, saudamos o monte com um cumprimento, encostando as mãos na parede e meditando, cada um a sua maneira.

Tínhamos tempo. Abastecemos os cantis, sentamos em um tronco e comemos o doce de mocotó que o pessoal de Cacoal havia trazido. Ninguém notou o torcer de nariz de Marcelo Beck quando provou um teco do doce. Mais tarde, já lá em cima, ele diria: “Olha, vou confessar, não gostei do doce de mocotó”. Aquilo foi um alívio para ele, brincamos depois. A “Linha Marcelo” tinha sido criada: seja sempre honesto!

Lado a lado com o gigante

Começamos a andar ao lado da parede. Caminhando em linha reta, tivemos que fazer uma longa descida para contornar uma pedra: “Toda descida é um grande desperdício quando estamos subindo”, pensei. Na viagem de volta, ao passar novamente por aquele trecho no sentido oposto, ampliaria a frase: “Toda subida é um esforço desnecessário para quem está descendo”.

Descanso para as pernas

Paramos novamente para comer um abacaxi e algumas bolachas. E ver a paisagem crescer. A Gran Sabana já não parecia tão grande mesmo ali no início da subida. Um pássaro Charlie passou por nós em busca de bolachas. E tiramos mais fotos, principalmente a Jane, que adora uma pedra para sentar e uma paisagem de fundo para enquadrar.

Parada para o lanche e para apreciar a paisagem que crescia em nossas costas

Após outra descida, a mata se abriu. Estávamos diante do temível Paso de las Lagrimas, assim chamado porque recebe o choro copioso de uma cachoeira do monte. Foi esta imagem, ainda no brieffing em Boa Vista, que aliviara as costas de Luciana e garantira o emprego a mais um carregador. Mas em dias secos, o Paso era apenas um suspiro e poucos nos molhamos.

A rampa final

Para vencer os 400 metros da subida final, passamos por um monte de rochas irregulares, um arenito em tom rosado, e várias pequenas pedras soltas. Nada assustador, mas exigia atenção. Jane, Marli e Veridiana ficaram juntas de Tensing, enquanto a infantaria os seguia. Fomos alcançados pelos carregadores Manoel e Gabriel e subimos juntos, pé ante pé, o monte.

A descida até o Paso de las Lagrimas e a subida final na Rampa

No último trecho, a chamada Rampa, a infantaria estava a frente novamente. Seguimos de perto Tensing sem perceber o horizonte mudar de escala em nossas costas. Quando ele parou e eu, um passo atrás, parei também, ele olhou e disse: “Parabéns, você subiu o monte Roraima”. E me esticou a mão.

Os primeiros a chegarem ao topo

Fez isso com cada um dos colegas que chegava ao topo. A vista da savana era incrível e tínhamos tempo para aproveitar. Jane correu para fazer fotos e Veridiana, fazendo a “Linha Veridiana”, dizia sempre “Também quero uma minha”. Ambas foram muito fotografadas.

Salmo 23

Enquanto isso, lá embaixo, o pelotão de trás guiado por Borracha, em seu ritmo "poquito a poquito", encarava o Paso de las Lagrimas. Ao ver a água cair, Michela travou. Foi seu herói Marcelo quem a incentivou a continuar a caminhada, citando o Salmo 23: “Ainda que eu ande pelo vale da sombra e da morte, não temerei mal nenhum pois o senhor está comigo”. Emocionante.

Marcelo e Michela pedem licença ao paredão. Alguns metros adiante, eles enfrentariam o temível Paso

Os dois pelotões só se encontrariam no Hotel Guácharo, assim chamado pelo número grande deste pássaro, o guácharo (Steatornis caripensis), uma ave noturna que vive em colônias nas fendas e cavernas protegidas da luz. Até chegar ao hotel dos pássaros, no entanto, tínhamos mais 40 minutos de trilha. Deixamos as fotos de lado e começamos a andar.

Pedras esculpidas

Tive a primeira impressão do topo do Roraima. Imaginava uma superfície plana, mas o monte é todo irregular, com labirintos, subidas e descidas, algumas áreas abertas e pedras esculpidas pelo vento que desafiam a criatividade dos olhos mais atentos. Além das rochas, o tempo muda a cada minuto, com uma névoa que vem e vai, ora colorindo ora cobrindo de cinza a paisagem.

Logística alaranjada no Hotel Guácharo

Passamos pela Pedra Maverich, o ponto mais alto do Roraima, com 2.810 metros (contra os 2.734 metros da média do tepui), assim chamada por se parecer, à distância, com o clássico automóvel dos anos 70. Cruzamos o Hotel Principal que, lotado, nos obrigou seguir viagem. Estava farto de caminhar, uma dor aguda me incomodava o lado direito do corpo. Espirrei algumas vezes. Talvez a energia tinha acabado já no terceiro dia de viagem. Chegamos, enfim, ao acampamento.

Hotel Guácharo

Novamente, fomos os primeiros a tomar banho, baixar as malas e conferir se Rogers tinha montado direitinho a barraca 33. Teria uma conversa séria com ele depois. Nos banhamos e, como o “pudor tinha ficado lá embaixo”, não nos preocupamos com as manobras para esconder as intimidades. Bastava subir na “pedra da troca” e pedir para os outros olharem para o outro lado. Algumas vezes funcionava.

O gavião, a exemplo de Tensing e eu, procurava um periquito-do-tepui. Não encontramos

Almoçamos arroz, feijão e carne moída, sentados em nossos banquinhos verdes de armar e usando pedras como apoio. Marli, se fazendo de vítima (a "Linha Marli") sentou na pedra em vez do banquinho. Jane, depois de ter a perna tratada pelo Borracha, matou um pratão de estivadora. Assim seriam nossos cinco dias no topo da montanha, acampados nos hotéis. No total são onze acampamentos, ou hotéis, estas espécies de cavernas esculpidas naturalmente nas rochas e preparadas para proteger minimamente o turistas das intempéries.

Últimos raios de sol

Fim da tarde e outro pôr do sol. Mas desta vez visto de cima

No fim de tarde, fomos premiados com céu limpo e um lindo entardecer. Do alto, olhamos o acampamento Base onde estávamos poucas horas antes. Aproveitei o sol para aquecer o corpo, descansar as costas e relaxar. Tensing procurava um pássaro de canto curto e voo ligeiro, o periquito-do-tepui (Nanopsittaca panychlora). A ave vive nas cavidades do paredão de Roraima e, todas as manhãs, voa em bando até outro tepui para buscar comida. Não encontramos o pássaro, só um gavião pequeno que também estava à espreita.

O Fantasma do Monte Roraima tem seu momento de contemplação

O chazinho no cair do dia era o que precisávamos para curtir os últimos minutos de sol. Escurecia no Roraima. Pegamos as lanternas e fomos para o acampamento novamente para nos preparar para dormir. Andri ficou um tempo mais. Era hora do Fantasma do Monte Roraima ter uma conversa a sós com a paisagem.

Dicas deste post
- O bastão de trekking vai ser muito útil neste trecho da caminhada, para dar bastante equilíbrio. O ideal é ter um só bastão, para deixar uma das mãos livres.
- Um tensor para os joelhos pode ser útil também.
- Se você não contratou carregador, este será o trecho mais difícil para carregar a mala.
- Fique atento com a mudança da paisagem ao entrar na florestinha. Há muitas plantas endêmicas interessantes (cobre de seu guia informações).
- Se o dia for chuvoso, a melhor capa de chuva é aquela separada entre jaqueta e calça impermeáveis. Os estilos poncho ou parka não são muito bons, pois atrapalham os movimentos das pernas.
- Como em todo o resto da viagem, deixe o cantil e a máquina fotográfica à mão. Um binóculo pequeno seria interessante para ser usado já no topo.
- Aos poucos vc pega a prática com os banhos nos lagos (use sabonete e xampu biodegradáveis, carregue numa sacola os produtos e a toalha e calce um chinelo ou sandália para ir ao lago).
- Carregue um banquinho e vá até à janela do hotel Guácharo apreciar a paisagem.

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