terça-feira, 16 de junho de 2009

A mina de prata

O guia nos mirou nos olhos. Tinha o olhar objetivo e falava sério: “se digo izquierda es izquierda, se digo derecha es derecha”, enfatizava. Estávamos ainda no inicio da mina, iluminados por uma réstia de luz que vinha de fora e pelo amarelo de nossas lanternas de cabeça. Nos preparávamos para conhecer a maior mina de prata do mundo, em Potosí, na Bolívia.

O atento Juan explica sobre a mina. Carrinhos de uma tonelada em uma descida de 25 metros. Sem freio. Os cuidados eram necessários.

A insistência do guia, Juan seu nome, não era gratuita. De fato, entrar na mina significava perigo para nós e para os trabalhadores lá de dentro. Turistas entre bananas de dinamite, carrinhos com uma tonelada de carga, trilhos em descida, operários, e pedra, muita pedra. Juan estava certo.



Antes de entrarmos, paramos para comprar presentes. Nada de doces ou CDs do Djavan. Os mimos são bananas de dinamite, detonadores, folhas de coca, álcool etílico e refresco, itens vitais para o trabalho dos mineiros. Fazem parte do pacote da visita, cabe a nós apenas escolher o que levar.

Antes de entrar na mina, presentes. Artigos fundamentais para os mineiros

Cada dupla com uma sacola. Cada um com sua roupa, bota e capacete munido de lanterna. Uma bateria nas costas para manter a lanterna acessa. Juan trocou a fala pela ação e, andando, começou a nos guiar pelos labirintos úmidos da mina de prata.

Lances, próximos a Sierro Rico. Iria conhecer a mina, e com amigos

Ponte de prata

Diziam os mais entusiastas que seria possível construir uma ponte de pura prata de Potosí à Madri, na Espanha, tamanha a quantidade do metal explorado em Sierro Rico. Exageros à parte, na “época de ouro” (ou de prata) e ainda hoje, a mina de Potosí é a maior do mundo.

Mesma foto. Na lente de Marco, o Sierro Rico. Antes da exploração espanhola, cume da montanha estava a 5 mil acima do nível do mar. Hoje, está a pouco mais de 4 mil.

Nos tempos da colônia, o metal era separado com mercúrio e transformado em lingotes de prata pura. Um rico rebanho, de 100 a 200 lhamas, cada uma com 10 a 12 quilos no lombo, levava o metal até o porto de Potosí, hoje Arica, no Chile. Tudo para abastecer o luxo do então império espanhol.

Entrada estreita e muito cuidado

Hoje a exploração é feita por cooperativas. São 35 delas, cada uma responsável por um lote de minas, entre as 125 ainda ativas, das 350 originais. “Hoy, Sierro Rico no es mas tan rico”, explica Juan. Não se vendem mais prata pura, mas um complexo com estanho, chumbo e zinco. As empresas fazem a separação. Na mina, sete mil mineiros trabalham pesado: de oito a dez horas por dia, com paradas de três em três horas, quando sentem que a coca que mastigam perdeu o sabor.

Os mineiros ficam o tempo todo com a bola de coca na boca

Daí a importância dos presentes que carregávamos nas costas. A coca dá vitalidade, e retira fome, sede e sono dos trabalhadores. Eles maceram uma bola de folhas na boca e dão mordicadas em um catalisador, a lixia, à base de semente de quinua e de anis, que potencializa o efeito da coca. Passam o dia todo sob este efeito. São de 20 a 25 gramas diárias da folha por mineiro. Nas pausas, além da coca, tabaco forte e refresco.

Festa para Zio, o protetor dos mineiros de Sierro Rico

Em uma das paradas conhecemos o Zio. Do santo malvado, da época quando os indígenas eram obrigados a trabalhar para espanhóis, Zio se tornou o grande protetor dos mineiros. O ritual para pedir proteção, menos acidentes e mais minerais, envolve oferta de tabaco e coca, e o trago de álcool 96%. “Se bebo puro, el Zio vá me dar minerales más puros”, acreditam.

Ben experimenta 96% de álcool. De tirar água dos olhos

Enquanto conversávamos, um mineiro parou para nos contar sua história – mais velho dos irmãos, ele teve que assumir o comando de casa, quando o pai faleceu. Assumiu também o emprego do pai. No canto da boca, mascava uma bola de folhas de coca aos bocados. A vida não é fácil em Sierro Rico. Em 2008, 16 pessoas morreram vitimas de explosões, quedas ou gases letais; em 2007 foram 36. Maior que a vontade de conhecer aquela realidade, no interior da mina de prata, é o desejo de sair de dentro dela o quanto antes.

Fim do percurso, ar puro e rarefeito do lado de fora. Segue viagem, e que Sierro Rico cuide dos mineiros que ficaram lá dentro




Foi o que fizemos. Deixamos os mineiros continuar com seu trabalho e puxamos o ar puro do lado de fora. Nunca valorizei tanto aquele ar rarefeito e seco da altitude boliviana. Em Potosí, a missão estava cumprida. Era hora de seguir viagem, mas agora com novos amigos.

Marco e Ben

Entrei esbaforido na van que nos levaria à mina de prata. “A chave, onde está a chave?”, tinha perguntado minutos antes. Confusão. Como a diária acabaria ao meio-dia tinha que deixar a bagagem no locker e correr para a van, que já ameaçava sair sem mim. Esbaforido e bufando, desculpei em meu castelhano difícil e reclamei algo no idioma pátrio.

O argentino Marco Villano, grande parceiro de viagem

Ao meu lado, os olhos verdes do argentino Marco brilharam. “Eu falo um pouco de português”, disse em seu castelhano de Santa Fé. Olhei para ele e o examinei. Baixo como eu, rosto salpicado de sardas, cabelos loiros e cacheados, com alguns dreads malucos. Foi ele quem puxou a conversa.

O norte-americano e quase argentino Ben Klopack. Ele e Marcos seguirão rumos distintos nesta história

Marco estudara no Uruguai por um tempo, morando com dois brasileiros – um deles, o Mineiro. Aprendeu alguma coisa de português. Pouca coisa, bem da verdade. “Este aqui é o Ben”, apontou-me. Do banco de trás, foram os olhos azuis de Ben que então me fitaram. “É argentino também?”, questionei. “Não, sou norte-americano”.

Marco e Ben, se preparando para a mina e já dentro dela

Ben mora em Buenos Aires onde estuda Economia. Tem uma característica marcante: é a cara do ator Elijah Wood, o Frodo de “Senhor dos Anéis”. Conhecera Marco em Uyuni e seguiram juntos para Sucre, umas das cidades que descartei de meu roteiro. Chegaram no mesmo dia que eu em Potosí. O destino queria que os três se encontrassem na van, a caminho de uma mina de prata.

Ben Wood. Diz ele que quando tinha cabelo comprido foi em uma festa vestido a Frodo. Ficou idêntico

“Vamos fazer o seguinte”, combinei ao ver Marco todo jeitoso com a máquina na mão, “você tira fotos minhas e eu tiro fotos suas. Depois um envia para outro”. Estava feito o trato, comum entre viajantes solitários que querem se ver nas fotos. E pelo resto da viagem, o tema fotografia seria uma constante entre o argentino e eu.

De volta à van. Mãos

Quando saímos da van fiquei imaginando: “Serão estes meus novos companheiros de viagem?”. Não passara um dia sozinho e o bastão que fora de Max, Jardel e Daniel tinha novos donos.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Guerra em Potosí

Bolívia em guerra. As bombas lambiam nossas costas enquanto caminhávamos pelo centro de Potosí, sul do país. Passavam próximas, respingando parte de seu conteúdo. Apressamos o passo, mas era dia de sorte, os algozes tinham outras vítimas em vista.

Meninas alvos e meninos guerreiros. Batalha campal

As bombas, ou bexigas cheias d’água em sua versão realista, são vendidas na própria rua. Há comércio de tudo na Bolívia. Os soldados são meninos, ainda de camisa, terno e gravata – o uniforme da escola. As vítimas, claro, as meninas em seus vestidinhos alvos (no duplo sentido da palavra).



“Isso é comum em toda a Bolívia”, confidenciou-me um cidadão local. Ao final da aula, guerra de bexigas cheias de água nas cercanias da escola. Em Uyuni, eu fora alvejado por uma rajada de metralhadora de água, disparada pelo dedo moleque de um garoto boliviano. Em Potosí, tínhamos que andar espertos: os turistas são o segundo alvo dos meninos.

Melhor correr, ou seremos os próximos alvos

Quando cheguei na cidade, naquela madrugada, respirava alívio. Se estávamos em guerra, a chegada a Potosí seria o desembarque dos aliados na Normandia. Estava morto. Após a tortura no ônibus boliviano, mal sentia as pernas e precisava de descanso.

Cenas de Potosí, cidade situada no sul da Bolívia, a mais de 4 mil metros acima do nível do mar. Nos tempos áureos da mina de prata, Potosí já foi a cidade mais habitada do mundo. Hoje, tem 250 mil habitantes

Fui usado por ingleses como intérprete. Fingiram interesse por mim, fiz as vezes de tradutor espanhol-inglês no táxi e na recepção e, fim de papo, não falei mais com eles. Mas me lixei para isso, queria banho e cama.

Cara de sono na manhã de Potosí. Noite bem dormida

No outro dia tive um café da manhã digno. Três dias viajando com Jimi e os gringos me deixaram meio desnorteado. Precisava firmar os pés no chão, comer e, ops, correr, porque estava mais uma vez atrasado. Deixei minha bagagem no locker e saí atrás da van que queria ir sem mim – fui o último a entrar, o brasileiro atrasado. O sôfrego eu em ação.

Estávamos indo para uma mina de prata. E então conheci Marco e Ben.

Neve na Bolívia


Uns flocos grandes de neve começaram a cair num dia sol. Estranho, neve na Bolívia. A chuva, parecia chuva, era sólida. Granizo, não sei, tinha jeito neve. Aliás, nunca vi neve.

Catedral de Potosí, no centro da cidade

A tarde na Bolívia, após a visita à mina de prata (leia no próximo post). foi para descanso e um breve passeio. Também para almoço junto com um monte de franceses, um americano e um argentino. Andamos pelo centro buscando um lugar para comer. Perguntamos para este e para aquele e fomos acabar em um restaurante normal no centro da cidade.

Bolos e pães em frente ao Comedor Popular

Estava naquela minha de trocar pesos chilenos pela moeda local, bolivianos, no caso – sina que carregaria até o fim da viagem. Precisava pagar a conta do restaurante e fui dar uma volta e negociar com o cara da casa de câmbio. A Bolívia é intrigante; próximo ao Mercadão Popular, ou Comedor Popular, vi bolos sendo vendidos na rua, assim como pães, muitos pães.

Comedor popular. Como nossos mercados, mas na Bolívia

No Mercadão, aquela bagunça, nada diferente de nossos mercadões. Tentamos tirar fotos de algumas cholas, as tias bolivianas, mas elas odeiam isso. Uma gritou alto e apontou a faca para nós. Ameaça.

A chola má nos olha atravessado. Mas esconde a faca

A faca da chola era um prenúncio: estávamos em guerra. Fim de tarde, hora da meninada sair da escola. Os turistas olham ressabiados; as meninas mais ainda. A molecada, ainda fardada, começa atirar os globos de água. Hilário. E gente adulta, como eu ou você, vendendo a munição na rua. Patrocinando a batalha.

Patrocínio da guerra. Gente adulta vende as 'armas' da garotada

Sobrevivemos à guerra e voltamos ao hostel. Hora de partir. Beijei a francesa no rosto, intrigado por não ter dado certo. No hostel, matamos mais um tempo e me juntei ao americano e ao argentino. Resolvi seguir viagem com eles. Era o início de uma longa história.