Parte da turma no início da caminhada. Mangas longas para enfrentar o sol e bastão pra aliviar os joelhos
Foi o momento de os turistas conhecerem seus carregadores com quem iriam interagir pelos próximos dias. Momento para tirar algumas fotos e acompanhar o agitado guia venezuelano Tensing Rodriguez cuidar de toda a logística. Naquele dia, um problema com os carregadores obrigou ele e o anárquico guia nordestino Everaldo Cunha Souza, o Borracha, ajudarem a carregar parte dos equipamentos. Coube à guia alemã-venezuelana Antonia Baranya puxar a fila - uma “sanfona” que se estica e se encolhe a medida que os da frente e os de trás estão mais longe e mais próximos uns dos outros.
Início da caminhada, a comunidade vai ficando pra trás (Foto: Carlaile Vale)
As três subidas
O primeiro dia de viagem tem um total de 16 km. E o primeiro trecho é, de longe, um dos mais difíceis. São pequenas descidas e longas subidas até que, após três lances íngremes para cima, chegamos a um mirante da comunidade. Foi nossa primeira parada e ali desconfiei pela primeira e única vez se daria conta de subir o monte com a mochila nas costas.
Primeira parada depois das três subidas. Tirar a bota e arrumar os esparadrapos dos dedos (Foto: Carlaile Vale)
Foi também a primeira vez que a infantaria original se reuniu. “Os quatro primeiros”, como repeti algumas vezes: além de mim, Luciana, Andri e Carlaile do Vale – um cientista da computação, professor na Universidade Federal de Rondônia (Unir), o único homem do grupo uniformizado de Cacoal, e o único que estenderia sua vida dentro da barraca por uma semana a mais, na Campus Party, em São Paulo, logo após a expedição ao Roraima. Era também meu parceiro de barraca.
A Gran Sabana com a fotografia dos montes Kukenan (à esquerda) e o Roraima.
Dali, a caminhada seria mais branda e mais longa. Andamos pela Gran Sabana, dentro do Parque Nacional Canaima que, com seus 30 mil km², é o sexto maior parque nacional do mundo. Canaima foi criado em junho de 1962 e, em 1994, foi declarado Patrimônio da Humanidade pela Unesco. Cerca de 65% da área do parque é tomada por tepuis, como aqueles que ficariam o tempo todo a nossa vista: o Roraima e seu irmão Kukenan (ou Matawi), à esquerda.
Trilha do capim queimado
Ao longo da trilha encontramos muitos focos de incêndio feitos pelos indígenas Pemóns para plantar. Segundo a cultura deles, o capim seco é uma paisagem feia, por isso, eles colocam fogo para ver a vida brotar novamente. Em toda a savana até o sopé da montanha, o que chama atenção é um paliteiro de árvores calcinadas, prova de que a região já teve uma floresta vistosa com árvores grandes, mas que não consegue se manter devido às constantes queimadas.
Ao longo de toda caminhada, o capim queimado e a vida florescendo novamente
Antonia explicou que um grande incêndio nos anos 60 criou o paliteiro. Mas as contínuas queimadas que foram feitas depois para espantar cobras, caçar animais ou mudar o pH do solo para o plantio, tornaram cada vez mais difícil o restabelecimento das árvores grandes. E assim, floresta virou savana e as maiores plantas se resumiram àquelas em torno dos rios.
Pão é pão
E foi próximo a um riacho, sob a sombra de poucas árvores, que fizemos a primeira parada para lanchar e reabastecer os cantis - o serviço de encher um cantil custava um saquinho de M&M de amendoim, segundo a cotação da Veridiana. Eram tempos de escambo. Como a comida demorara para chegar, a professora da Unir, matogrossense radicada em Cacoal, Jane Aparecida Araújo, que subia a montanha para celebrar os 50 anos de idade, exibiu pela primeira vez o seu pacote de waffer Bauducco. O “Bauducco ostentação” pendurado caprichoso em uma sacolinha plástica transparente do lado de fora da mochila de Jane nos acompanharia pelo resto da viagem.
A primeira parada do lanche não foi lá muito bonita. Tempo pra conhecer mais os colegas
Também por ali, fizemos os primeiros comentários sobre Cacoal, cidade rondonense localizada a 479 km da capital Porto Velho, com população de 90 mil habitantes (segundo o IBGE) e 53 pessoas (segundo o Murilo). A cidade foi fundada em 26 de novembro de 1977 e nomeada assim devido à grande quantidade de cacau nativo encontrado em sua área. É, portanto, mais nova de que muitos dos participantes da expedição. E seria tema de muitas paradas.
A formiga Bachago (Atta laevigata). Em grupo, elas destroem qualquer planta rapidinho
A comida chegou e o carregador Gabriel Rodriguez, um turista de Caracas que fazia bico para a Roraima Adventures em suas férias, comentou sobre a fatia mais grossa do sanduíche, aquela que fica na “bunda” do pão. Antonia, em seu jeito alemão nervoso, esbravejou: “pão é pão!” Apenas observamos. E depois de comermos um sanduíche de queijo, presunto e tomate com suco sabor amarelo (menos a Luciana, que é alérgica) e de vermos fileiras de formigas Bachaco (Atta laevigata) destruírem algumas plantas, achamos melhor seguir viagem. Ainda tinha um bom caminho e o sol estava indo embora.
Três rios
Foi no entardecer que cruzei o acampamento do Rio Tek e cheguei ao rio junto com o carregador Gabriel. Ele seguiu, eu parei para me banhar. Depois chegaram Luciana, que resolveu seguir viagem também, Andri e Carlaile. A infantaria original.
A igreja mostra a entrada da religião católica entre os indígenas Pemóns
Faltava um quilômetro entre o Rio Tek e o Rio Kukenan, onde acamparíamos na primeira noite. A sanfona estava bem esticada quando passei pela pequenina igreja católica localizada no alto da colina, com vista para o Roraima, o Kukenan, os rios e tudo mais. Na outra ponta da fila, Alice penava para carregar a pesada mochila e era amparada pelo casal curitibano Madie e Marcelo Beck, ela advogada, ele promotor. Craques em longas caminhadas, a dupla ficou para trás para ajudar a nova amiga.
Cruzar o Rio Kukenan, que nasce no tepui homônimo, foi fácil. Mais complicado foi atravessar o Kamaiwa, cujas águas são oriundas do Roraima. Mais forte e traiçoeiro, o rio me forçou a tirar as botas e atirá-las até a outra margem para não molhá-las. Não teria o mesmo cuidado na viagem de volta quando o poderoso Kamaiwa, ali mesmo na junção com o Kukenan, estava ainda mais nervoso.
O Rio Kukenan, logo após o cruzamento com o Kamaiwa. Nosso local de banhos gelados
O Rio Kukenan, que dá nome ao nosso acampamento, depois de receber as águas do Kamaiwa, segue firme por um quilômetro mais até se encontrar com o Rio Tek. O novo curso vai desembocar no poderoso Rio Caroni, de 925 km de extensão e vasão de 4.850 mil m³/s, de onde a Venezuela aproveita grande parte do potencial hidrelétrico, com quatro plantas - entre elas a Hidrelétrica de Guri, cuja potência instalada de 10.200 MW faz dela a 4ª maior do mundo, atrás de Três Gargantas (China), Itaipu (Brasil/Paraguai) e Belo Monte (Brasil, ainda em construção). Finalmente, o Caroni encontra o Rio Orinoco que segue até o Oceano Atlântico.
Não falta comida, e boa comida, na viagem. Sempre nos pratinhos de plástico alaranjados
Foi no Kukenan/Kamaiwa que tomamos banho logo que chegamos. E por ali sentimos as primeiras picadas dos pernilongos puri-puri, conversamos com uma turma que descia o monte e não tivera muita sorte com o clima, e comemos, apertadinhos na mesa em nossos pratos de plástico alaranjado, o primeiro jantar em grupo. E fomos dormir nas barracas. Ou tentar dormir, já que as conversas dos novos amigos sempre atrapalhava a vizinhança.
Dicas deste post
- Reconheça seus limites. Se você não for aguentar a mochila, contrate um carregador. Você fará uma viagem mais tranquila e vai movimentar a economia local.
- Toda caminhada debaixo de sol, recomenda-se o básico: protetor solar, óculos escuros, chapéu ou boné e mangas longas. Também usei um tecido que cobre o pescoço, bem útil.
- Use esparadrapos ao menos no dedão e no mindinho dos dois pés. Você pode colocar uma meia fina, por baixo da meia principal também. Algumas pessoas coloca vaselina para tirar o atrito dos pés.
- No final da caminhada, tire a bota e deixe os pés respirarem. Se tiver bolha, tem que drená-la e cobri-la para não piorar.
- Algumas porcarias para comer sempre valem como ouro no escambo das caminhadas. Ninguém quis saber de minhas barrinhas de cereal.
- Fique esperto ao atravessar qualquer rio. Pedras são lisas e é um perigo pisar sem saber onde. Um tombo (presenciei vários), além de machucar bastante, pode molhar sua bagagem.
- No Rio Kukenan, um repelente de qualidade vai ser essencial para afugentar os puri-puri. Mas você vai precisar de uma blusa de manga comprida e uma calça leve.