quinta-feira, 30 de abril de 2015

Dia 1: De Paraitepui ao Rio Kukenan

A caminhada começou na comunidade de Paraitepui, nome indígena que significa “chinelo” (para) e “monte” (tepui) devido ao formato de pegadas encontradas no alto do Monte Roraima. Ainda que acostumados com aquele vaivém de turistas, os indígenas Pemóns teimam em se esconder em suas casas quando chegamos. Principalmente as crianças.

Parte da turma no início da caminhada. Mangas longas para enfrentar o sol e bastão pra aliviar os joelhos

Foi o momento de os turistas conhecerem seus carregadores com quem iriam interagir pelos próximos dias. Momento para tirar algumas fotos e acompanhar o agitado guia venezuelano Tensing Rodriguez cuidar de toda a logística. Naquele dia, um problema com os carregadores obrigou ele e o anárquico guia nordestino Everaldo Cunha Souza, o Borracha, ajudarem a carregar parte dos equipamentos. Coube à guia alemã-venezuelana Antonia Baranya puxar a fila - uma “sanfona” que se estica e se encolhe a medida que os da frente e os de trás estão mais longe e mais próximos uns dos outros.

Início da caminhada, a comunidade vai ficando pra trás (Foto: Carlaile Vale)

As três subidas

O primeiro dia de viagem tem um total de 16 km. E o primeiro trecho é, de longe, um dos mais difíceis. São pequenas descidas e longas subidas até que, após três lances íngremes para cima, chegamos a um mirante da comunidade. Foi nossa primeira parada e ali desconfiei pela primeira e única vez se daria conta de subir o monte com a mochila nas costas.

Primeira parada depois das três subidas. Tirar a bota e arrumar os esparadrapos dos dedos (Foto: Carlaile Vale)

Foi também a primeira vez que a infantaria original se reuniu. “Os quatro primeiros”, como repeti algumas vezes: além de mim, Luciana, Andri e Carlaile do Vale – um cientista da computação, professor na Universidade Federal de Rondônia (Unir), o único homem do grupo uniformizado de Cacoal, e o único que estenderia sua vida dentro da barraca por uma semana a mais, na Campus Party, em São Paulo, logo após a expedição ao Roraima. Era também meu parceiro de barraca.

A Gran Sabana com a fotografia dos montes Kukenan (à esquerda) e o Roraima.

Dali, a caminhada seria mais branda e mais longa. Andamos pela Gran Sabana, dentro do Parque Nacional Canaima que, com seus 30 mil km², é o sexto maior parque nacional do mundo. Canaima foi criado em junho de 1962 e, em 1994, foi declarado Patrimônio da Humanidade pela Unesco. Cerca de 65% da área do parque é tomada por tepuis, como aqueles que ficariam o tempo todo a nossa vista: o Roraima e seu irmão Kukenan (ou Matawi), à esquerda.

Trilha do capim queimado

Ao longo da trilha encontramos muitos focos de incêndio feitos pelos indígenas Pemóns para plantar. Segundo a cultura deles, o capim seco é uma paisagem feia, por isso, eles colocam fogo para ver a vida brotar novamente. Em toda a savana até o sopé da montanha, o que chama atenção é um paliteiro de árvores calcinadas, prova de que a região já teve uma floresta vistosa com árvores grandes, mas que não consegue se manter devido às constantes queimadas.

Ao longo de toda caminhada, o capim queimado e a vida florescendo novamente

Antonia explicou que um grande incêndio nos anos 60 criou o paliteiro. Mas as contínuas queimadas que foram feitas depois para espantar cobras, caçar animais ou mudar o pH do solo para o plantio, tornaram cada vez mais difícil o restabelecimento das árvores grandes. E assim, floresta virou savana e as maiores plantas se resumiram àquelas em torno dos rios.

Pão é pão

E foi próximo a um riacho, sob a sombra de poucas árvores, que fizemos a primeira parada para lanchar e reabastecer os cantis - o serviço de encher um cantil custava um saquinho de M&M de amendoim, segundo a cotação da Veridiana. Eram tempos de escambo. Como a comida demorara para chegar, a professora da Unir, matogrossense radicada em Cacoal, Jane Aparecida Araújo, que subia a montanha para celebrar os 50 anos de idade, exibiu pela primeira vez o seu pacote de waffer Bauducco. O “Bauducco ostentação” pendurado caprichoso em uma sacolinha plástica transparente do lado de fora da mochila de Jane nos acompanharia pelo resto da viagem.

A primeira parada do lanche não foi lá muito bonita. Tempo pra conhecer mais os colegas

Também por ali, fizemos os primeiros comentários sobre Cacoal, cidade rondonense localizada a 479 km da capital Porto Velho, com população de 90 mil habitantes (segundo o IBGE) e 53 pessoas (segundo o Murilo). A cidade foi fundada em 26 de novembro de 1977 e nomeada assim devido à grande quantidade de cacau nativo encontrado em sua área. É, portanto, mais nova de que muitos dos participantes da expedição. E seria tema de muitas paradas.

A formiga Bachago (Atta laevigata). Em grupo, elas destroem qualquer planta rapidinho

A comida chegou e o carregador Gabriel Rodriguez, um turista de Caracas que fazia bico para a Roraima Adventures em suas férias, comentou sobre a fatia mais grossa do sanduíche, aquela que fica na “bunda” do pão. Antonia, em seu jeito alemão nervoso, esbravejou: “pão é pão!” Apenas observamos. E depois de comermos um sanduíche de queijo, presunto e tomate com suco sabor amarelo (menos a Luciana, que é alérgica) e de vermos fileiras de formigas Bachaco (Atta laevigata) destruírem algumas plantas, achamos melhor seguir viagem. Ainda tinha um bom caminho e o sol estava indo embora.

Três rios

Foi no entardecer que cruzei o acampamento do Rio Tek e cheguei ao rio junto com o carregador Gabriel. Ele seguiu, eu parei para me banhar. Depois chegaram Luciana, que resolveu seguir viagem também, Andri e Carlaile. A infantaria original.

A igreja mostra a entrada da religião católica entre os indígenas Pemóns

Faltava um quilômetro entre o Rio Tek e o Rio Kukenan, onde acamparíamos na primeira noite. A sanfona estava bem esticada quando passei pela pequenina igreja católica localizada no alto da colina, com vista para o Roraima, o Kukenan, os rios e tudo mais. Na outra ponta da fila, Alice penava para carregar a pesada mochila e era amparada pelo casal curitibano Madie e Marcelo Beck, ela advogada, ele promotor. Craques em longas caminhadas, a dupla ficou para trás para ajudar a nova amiga.

Cruzar o Rio Kukenan, que nasce no tepui homônimo, foi fácil. Mais complicado foi atravessar o Kamaiwa, cujas águas são oriundas do Roraima. Mais forte e traiçoeiro, o rio me forçou a tirar as botas e atirá-las até a outra margem para não molhá-las. Não teria o mesmo cuidado na viagem de volta quando o poderoso Kamaiwa, ali mesmo na junção com o Kukenan, estava ainda mais nervoso.

O Rio Kukenan, logo após o cruzamento com o Kamaiwa. Nosso local de banhos gelados

O Rio Kukenan, que dá nome ao nosso acampamento, depois de receber as águas do Kamaiwa, segue firme por um quilômetro mais até se encontrar com o Rio Tek. O novo curso vai desembocar no poderoso Rio Caroni, de 925 km de extensão e vasão de 4.850 mil m³/s, de onde a Venezuela aproveita grande parte do potencial hidrelétrico, com quatro plantas - entre elas a Hidrelétrica de Guri, cuja potência instalada de 10.200 MW faz dela a 4ª maior do mundo, atrás de Três Gargantas (China), Itaipu (Brasil/Paraguai) e Belo Monte (Brasil, ainda em construção). Finalmente, o Caroni encontra o Rio Orinoco que segue até o Oceano Atlântico.

Não falta comida, e boa comida, na viagem. Sempre nos pratinhos de plástico alaranjados

Foi no Kukenan/Kamaiwa que tomamos banho logo que chegamos. E por ali sentimos as primeiras picadas dos pernilongos puri-puri, conversamos com uma turma que descia o monte e não tivera muita sorte com o clima, e comemos, apertadinhos na mesa em nossos pratos de plástico alaranjado, o primeiro jantar em grupo. E fomos dormir nas barracas. Ou tentar dormir, já que as conversas dos novos amigos sempre atrapalhava a vizinhança.

Dicas deste post
- Reconheça seus limites. Se você não for aguentar a mochila, contrate um carregador. Você fará uma viagem mais tranquila e vai movimentar a economia local.
- Toda caminhada debaixo de sol, recomenda-se o básico: protetor solar, óculos escuros, chapéu ou boné e mangas longas. Também usei um tecido que cobre o pescoço, bem útil.
- Use esparadrapos ao menos no dedão e no mindinho dos dois pés. Você pode colocar uma meia fina, por baixo da meia principal também. Algumas pessoas coloca vaselina para tirar o atrito dos pés.
- No final da caminhada, tire a bota e deixe os pés respirarem. Se tiver bolha, tem que drená-la e cobri-la para não piorar.
- Algumas porcarias para comer sempre valem como ouro no escambo das caminhadas. Ninguém quis saber de minhas barrinhas de cereal.
- Fique esperto ao atravessar qualquer rio. Pedras são lisas e é um perigo pisar sem saber onde. Um tombo (presenciei vários), além de machucar bastante, pode molhar sua bagagem.
- No Rio Kukenan, um repelente de qualidade vai ser essencial para afugentar os puri-puri. Mas você vai precisar de uma blusa de manga comprida e uma calça leve.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Prólogo: Frescolitas, Chinotto e o bolso cheio de bolívares

Entre 22 e 31 de janeiro de 2015, fiz a expedição ao Monte Roraima com a empresa Roraima Adventures, de Boa Vista (RR). O pacote maior, Circuito Mágico Makunaíma, é de 10 dias e 9 noites - com cinco noites no topo do monte. O relato aqui no blog segue a linha cronológica dos dias, com bastante informações sobre o que você vai encontrar lá, além de muitas piadas internas. No final de cada post, tem o "Dicas deste post", uma espécie de resumo dos serviços que o texto oferece. Quem não quiser ler a história, vá direto ao final do post. Neste prólogo, conto a história do dia anterior ao início da aventura. Boa leitura. Boa viagem.

Quando vi aquele grupo de senhoras - e um cara - de Cacoal (RO) trajando o uniforme “Expedição Monte Roraima”, percebi que aquela não seria uma viagem como as outras. Na hora e meia de briefing do Roraima Adventures, no Hotel Aipana, em Boa Vista , em 22 de janeiro de 2015, tivemos uma ideia de o que nos aguardava nos próximos 10 dias.

Divisa do Brasil com a Venezuela na cidade de Pacaraima. Local para trocar moeda

Na mesa, quatorze cabeças se estudavam. Seria aquele o grupo com quem conviveria entre 22 e 31 de janeiro, para fazer a expedição ao Monte Roraima. De senhoras em plena forma a adolescentes cujos pés nunca tocaram nada menos polido que porcelanato. De casais aventureiros e “caminhantes profissionais” a duplas que fariam este tipo de coisa pela primeira vez na vida.

Muitas notas de bolívares no bolso. O guia Everaldo (Borracha) separou um saco só para pagar os carregadores

“Que legal, vamos passar os próximos dias juntos!”, resumiu, logo de cara, o sorridente biólogo cearense Marcelo Soares, que subiria o monte com sua esposa, a também bióloga Michella Albuquerque. Em poucos dias, o tilintar de dentes nas noites frias do Roraima faria o casal de Fortaleza sentir saudades do clima de Boa Vista.

Hotel Anaconda, em Santa Elena de Uiarén (Venezuela)

As análises mútuas continuaram naquela noite, quando o grupo se reuniu no primeiro jantar, no bom Hotel Anaconda, já em Santa Elena de Uiarén, na Venezuela, a 220 km de Boa Vista. “Parrilla ou hamburguesa?”, perguntou alguém do staff. “Os dois”, respondeu a jovem comilona manauara Alice Anjos, que estava ali com a amiga, a marigaense Veridiana Sahd, porque encontrara uma passagem de Manaus para Boa Vista por 80 reais (uma economia de 30 reais).

Polar Ligth, cerveja extra refrescante e extra ruim

Para pagar comida e latas de Frescolita, Chinotto e Polar Extra Light, os visitantes tinham bolsos cheios. Na fronteira, antes de entrar na Venezuela, ainda em Pacaraima, todo mundo fez o câmbio de 52 por 1 trocando reais por bolívares (Bs). Como a maior cédula venezuelana é a de 100 Bs, é impossível evitar carregar muitas delas.

Turma de expedicionários. Partiu Monte Roraima!

Sol e longas distâncias

Aquela sexta-feira (23 de janeiro) era feriado em toda Venezuela. A data lembra a queda do general Marcos Perez Jimenez, em 1958, e o fim da ditadura no país. “A Venezuela tem uma das democracias mais antigas da América Latina”, vangloriam-se alguns. “Isso não é democracia, é libertinagem”, explicou em seus termos um carredor, tempos depois, já na trilha.

De 4x4 já no Parque Nacional Canaima

Alheios a isso tudo, acordamos cedo naquela sexta-feira. Coloquei esparadrapo nos dedos dos pés, vesti duas meias e calcei com cuidado pela primeira vez a bota depois de dois anos sem usá-la. O último solo em que minha Nômade pisara fora o Parque Tongariro, na Nova Zelândia, que cruzei de ponta a ponta, em janeiro de 2013, ao lado de um desconhecido alemão. A bota ainda não conhecia o sobe-e-desce-sol-e-chuva que enfrentaria. Mal sabia que antes de chegar ao monte seria costurada inteira por um carregador. Ignorava que aquela era sua última viagem.

Conversas no 4x4: a movimentada vida da Alice e os primeiros contatos com os colegas

No café da manhã, conversamos sobre o que esperávamos da viagem. Ainda estava preocupado com o peso de minha mochila. O economista Andri Stahel, um senhor de sotaque gringo que aparenta ser mais jovem que seus 48 anos, e eu éramos os únicos que não tínhamos contratado carregadores. A paulista Luciana Christante, que trabalha numa editora de livros científicos internacional, embora já afeita a longas caminhadas, mudara de ideia ao ver a foto do Paso de las Lágrimas, ainda no brieffing em Boa Vista. Fizera bem.

Na comunidade de Paraitepui, vivem os indígenas da etnia Pemón. Este povo concentrado no sul do estado Bolívar, na Venezuela, é sub-dividido em Taurepan, Arekuna e Kamaroto. Estima-se em 30 mil Pemóns no país   

Do hotel fomos para os veículos. São mais de 100 km de Santa Elena até a comunidade Paraitepui, no Parque Canaima. Atravessamos a Gran Sabana em 4x4 ouvindo as histórias a la novela mexicana da vida agitada de Alice, enquanto eu tentava convencer o pessoal a comer doce de tamarindo, que havia comprado na cidade. Fazia bastante sol e a caminhada estava apenas começando.

Dicas deste post
- O trekking do Monte Roraima é considerado nível médio. Para as pessoas que não estão acostumadas, sugiro fazer um treino ao menos dois meses antes, com caminhadas longas e, carregando mochila.
- Faça seu check list e confira as dicas básicas. A Roraima Adventures sugere isso aqui.
- Leve dinheiro em efetivo para fazer o câmbio logo em Pacaraima (na divisão com a Venezuela). Você vai precisar de dinheiro para o jantar do hotel, para carregadores (se for o caso) e para o almoço e compra de artesanatos no final da viagem.
- Defina se você vai precisar de um carregador pessoal. O valor dele depende do câmbio do Real para o Bolívar. É preciso pagar também a alimentação dele. Quem contratou pagou cerca de R$ 600 nesta expedição. Cada carregador leva no máximo 15 kg por participante.
- Detalhe: o staff é responsável por carregar toda a logística, inclusive as barracas. Cabe ao participante levar os objetos de uso pessoal, incluindo o saco de dormir e o isolante.
- Escolher entre contratar ou não um carregador depende de seu preparo físico. Eu gosto de carregar minha própria bagagem e, além disso, não precisava esperar os carregadores chegarem quando terminava a caminhada (nós sempre chegamos ao acampamento antes deles).