Faltou a perninha
Tenho uma teoria de que em certas ocasiões da vida nos falta a perninha da aranha. Na verdade, falta a perna traseira da aranha negra da última árvore do morro encantado. Eu até tenho a perna dianteira, mas não a traseira. Calma, explico. Você já passou por aquele momento em que falta algo específico, bem específico, para conseguir alguma coisa? Comigo acontece quase sempre. Ilustro com um diálogo de infância entre minha mãe e eu:
- Filho, já arrumou a
cozinha?
- Já mãe.
- Secou a louça?
- Sequei.
- Limpou a pia?
- Limpei.
- Varreu o chão?
- Varri, mãe!
- E limpou as frestinhas
dos azulejos atrás da geladeira?
- Não, isso eu não fiz.
- Ah, então você não
arrumou a cozinha!
A danada sempre vencia.
Enfim, convivo com o
problema da perninha da aranha, ou da fresta do azulejo, há muito tempo. Já
passei pelo martírio de não conseguir descontar cheque no banco, por meses a
fio, devido ao maldito casal de riscos no cantinho, entre outras coisas. Parte,
grande parte, por erro meu – sou um sobrevivente, reafirmo. Mas muito também
pelo destino.
A última dessas foi hoje
(08/10/09) quando fui fazer a transferência do carro, um Honda Civic 2.000,
para meu nome. Seria o fim de uma longa semana de trabalho, a resolução de
todos problemas. Mas faltou a perninha. Tinha começado o processo na
segunda-feira, quando levei o carro para fazer a vistoria. De cara, o rapaz me
disse que precisava trazer a documentação para Foz e ir atrás de um tal sinal
público no cartório.
Tudo bem, lá fui eu para o
cartório. Espera na fila e, na minha vez, apresentei os papéis. O problema é
que a tabeliã lá de Aracaju casou, mudou nome e assinatura e não atualizou os
dados no tabelionato de cá. Não tenho nada com os enlaces da doutora, mas na
hora fiquei puto. Tive que ligar para capital sergipana, ajeitar os esquemas,
pedir um fax atualizando a assinatura e convencer o pessoal de Foz que sou
gente de bem.
Ufa! Documentos em mão,
fui me dar conta que o carro, tal como estava, jamais passaria por uma vistoria
bem feita. E dá-lhe ajeitar buzina. Mas onde achar buzina de Honda? E dá-lhe
comprar pneus no Paraguai, e comprar extintor novo e fazer de mecânicos,
técnicos eletrônicos e do Chico Borracheiro meus melhores amigos.
Hoje, último dia para
fazer a vistoria segundo me informara uma atenciosa
(ironic mode on) atendente do Detran, fui até lá ver no que dava.
Estacionei o Honda, sorriso no rosto, o carinha começou a analisar o carro –
pediu da luz, das setas e do freio, mas nem olhou os pneus, passou batido pela
buzina e ignorou sobremaneira meu extintor zero quilômetro. “Tem um problema
aqui”, falou. E eu saí do carro.
Estava rompido o lacre da
placa traseira. Eu tinha a aranha do morro encantado, mas ele queria a aranha
de uma árvore específica. Catei o carro, fui trocar as placas, morri com mais
cinquenta pila, doei um rim e voltei.
De novo, o inspetor me
olhou com desconfiança. Saí do carro e dei tapinhas nas costas do cara. Tudo
certo, o carro estava em
ordem. Peguei os papéis e fui ter com as atendentes
burocratas. Na minha vez, documentos em mesa, mas... “falta um comprovante de
residência”. Eu sempre faço isso, sempre me falta algo. Desta vez acertara até
a árvore, o problema era a perninha.
Tinha uns 20 minutos ainda
antes de o Detran fechar – descobri depois que o meu prazo não vence hoje, mas
daqui a um mês (por ser o carro de fora, tenho 60 dias para ajeitar os papéis –
preciso ligar para a tal atendente depois). Corri para casa, xinguei os
motoristas lentos da pista, os semáforos, deus-e-o-mundo e o time do Palmeiras que
não para de vencer no campeonato. Peguei a primeira conta de luz da gaveta e
corri para o Detran. Cheguei a tempo.
Bufava, mas fingi
tranquilo. Mostrar confiança sempre funciona. Falei em voz baixa e fiquei
aguardando a sentença enquanto a moça buscava as informações na Internet. “Tem
uma multa aqui de 53 reais, que precisa ser quitada”, falou. Aumentei a voz,
vociferei. Falei coisas que não diziam respeito a ela. Eu tinha tudo do morro
encantado, até a perninha da aranha. Só que era a perna errada.
Resumo da ópera: depois de
viajar seis dias para trazer o Bonfim, o Honda que comprei de um amigo em
Aracaju, de ajeitar o carro nos conformes e de arrumar a papelada, estou
impossibilitado de chamar o carro de meu por causa de uma multinha de 2005. A tal perninha.
Postado depois:
Tarde, passado das 17h30
do dia 28 de dezembro de 2009. O ano dá seus últimos suspiros e eu aqui ainda
na redação. Fiquei um tempo mais só para escrever esta nota a respeito de meu
Honda. Ops, ainda não é meu. Após todo este tempo, não consegui fazer a
transferência. Sinto-me em um conto kafkaniano, e não sei o que fazer.
Depois que resolvi as
primeiras pendengas, fiquei tranquilo, afinal teria 60 dias para fazer a
transferência do carro. Descansei uma semana e voltei na correria. Nesse meio
tempo surgiu mais um multa do passado – o Detran está me cobrando
homeopaticamente. E, por causa dela, perdi o prazo para fazer a transferência e
morri com mais uma multa e cinco pontos na carteira, embora tenha pagado a
multa com mais de uma semana de antecedência. Não caiu no sistema em tempo.
Neste meio tempo bati o
carro. Outro dia na estrada caiu uma parte da lateral dele e, em outro dia, o
Flávio saiu com a maçaneta na mão. A segunda vistoria vai vencer e vou fechar o
ano sem chamar o carro de meu. Antes do Natal fiz uma última tentativa e tinha
dado certo, mas hoje, quando fui ao Detran pela última vez apenas para pegar
meus documentos, me disseram que meu pedido tinha sido indeferido. O motivo?
Adivinhem. Outra multa.
Agora tenho que pagar a
multa de uma infração em Arapiraca, no Alagoas, até amanhã às 14h, dia e
horário que o Detran fecha as atividades do ano. Não vou conseguir. Começo 2010
com esta pendência. Tem que pagar IPVA e o seguro obrigatório no estado de
origem, lá em Sergipe. E
começar tudo de novo.
Neste momento, o Bonfim
está em uma oficina mecânica em Medianeira, todo aberto esperando que o livrem
dos efeitos de um superaquecimento, que nos deixou no meio da estrada em plenas
festas de fim de ano. E o pobre nem dono tem.