“Vamos ver o que acontece, conforme for eu não vou”, anunciou Marli a sua posição sobre visitar o
Lago Gldys. Não foi. Era nosso dia de folga. Ficaríamos duas noite no mesmo hotel, sem precisar deslocar mochilas pesadas ou mudar as barracas de lugar. O grupo poderia visitar um lago, na parte guianesa do monte, ou usar o dia para relaxar e curar feridas. A maioria ficou com Marli, tomando sol em nosso jardim de inverno e colocando a conversa em dia. Os dois Marcelos, Andri, Luciana e eu, além dos guias Tensing e Antonia e dos carregadores Manoel e Gabriel escolhemos nos exercitar um dia a mais.
O casal Marcelo e Madi pisa nas nuvens. Nada de Roraiminha pra gente
Horas antes, Borracha tinha nos acordado na barraca com sua cantoria característica. “Levantem que a janela abriu, vamos ver o Roraiminha”, dizia. Era cedo, mas saí da barraca. O mirante da face brasileira do Monte Roraima, segundo ele, estava aberto. De lá, poderíamos ver o lado leste do tepui, voltado para a floresta tropical protegida pela Reserva Indígena Raposo Serra do Sol, onde vivem 20 mil índios, a maioria deles da etnia macuxi. Mais fácil de ver ali de cima, seria o Roraiminha (ou Wei-Assipu), uma montanha menor localizada bem em frente ao Monte Roraima e cercado pela floresta tropical.
Mesmo sem Roraiminha, as nuvens do alto do tepui dão uma vista impressionante
Não vimos nem um nem outro. Partimos com Borracha, ainda sonolentos, pulando as pedras. O mirante não era tão perto quanto aquele do Hotel Guácharo, voltado para a Gran Sabana venezuelana. Chegamos com o sol nascendo e não vimos árvores, índios ou Roraiminha, mas um mar de nuvens. Era como estar na janela do avião, mas com um ângulo de visão bem maior. Uma paisagem linda.
Plantas do Roraima
Início da caminhada para o Lago Gladys. O tempo, este fanfarrão, começou aberto
Voltamos para o hotel, tomamos café, esperamos o grupo de aventureiros se unir e partimos para nosso dia livre de caminhada. Muito bom andar com a mochila de ataque, sem aquele peso da mochila principal. Tanto que, nos primeiros metros, fiquei tirando algumas fotos e me afastei do grupo. A Antonia ficara para trás comigo. Para alcançar o pessoal, saí correndo entre as pedras, pulando rápido de uma para a outra, com Antonia na minha espreita. Quando chegamos próximo ao grupo, ela me confessou que estava louca de vontade de correr entre as pedras.
Dia de aprender com Tensing sobre as plantas. A belíssima Bonnetia roraimae toma conta da paisagem
A caminhada foi divertida, com aquele vaivém de neblina característico do Roraima e um pular incessante de pedras. Encontramos o imenso bosque da endêmica
Bonnetia roraimae, um arbusto, o 2ª maior em porte do Monte Roraima, que, com sua folha pequena e avermelhada, toma conta da vista na divisa entre Brasil e Guiana.
Algumas plantas do Roraima. Na fileira do alto: Helianphora glabra, Stegolepis guianensis e Orectanthe sceptrum. Na debaixo: Bejaria imthurnii, Drosera roraimae e Brocchinia tatei
A flora, novamente, chama a atenção. Andamos por áreas alagadas que parecem ter sido criadas por paisagistas. Como matéria-prima, várias plantas endêmicas, como a
Helianphora glabra de boca aberta à espera de um mosquito curioso; a palmeira
Stegolepis guianensis, com suas folhas em forma de leque; a pontiaguda
Orectanthe sceptrum, que, vista de cima, se assemelha a uma mandala; a linda
Bejaria imthurnii conhecida como Rosa de Roraima; a também insetívora
Drosera roraimae; várias bromélias do gênero Brocchinia (como a
B. reducta e a
B. tatei), orquídeas, musgos, entre outras.
"Taren". E as cortinas se abriram
Foi o dia mais gostoso de caminhada. Um pouco pelo alívio das costas, um pouco pela aula sobre a flora roraimense, um pouco pelas surpresas do clima. Chegamos ao
Lago Gladys com a neblina tomando conta da paisagem. Sentamos em um penhasco e deixamos os pés caírem, enquanto encarávamos aquela massa de ar branca bem diante de nossos olhos. Mentalizamos “taren”, “taren”, palavra que quando dita ou pensada muita vezes ajuda a fazer o tempo melhor. E funcionou.
Andri e Marcelo descansam as pernas e esperam o tempo melhorar
Como uma cortesia a nossa visita, Roraima abriu por alguns minutos a janela do
Lago Gladys e jogou raios de sol naquela maravilha: um lago cercado por uma pequena floresta, tudo isso dentro de um vale, como se estivesse em um pacote de presente, ou em uma arena de futebol. Nós, de cima, aceitamos o presente. E agradecemos por mais um taren bem sucedido.
A janela ficou aberta por pouco tempo. Quase não deu tempo de fazer esta foto
Banho gelado
Na volta, passamos por um mirante do lado guianense, de onde teríamos uma vista da floresta da Guiana. Ali o taren foi fraco e a janela ficou fechada com aquela neblina tão densa que poderia ser fatiada. Seguimos caminho até nossa parada do almoço, em uma piscina natural profunda onde podíamos mergulhar. E fizemos. Andri, Luciana e eu nos vestimos de coragem, despimos de roupas e demos alguns mergulhos. A água estava bem fria, como se pontas da
O. sceptrum nos espetasse o corpo todo. Ao menos salvamos o banho do dia, com sabonete e xampu (biodegradáveis, claro) em uma água super gelada.
Andri se veste de coragem para dar o mergulho na água super gelada
Almoçamos macarrão com frango sentados em pedras e vendo a paisagem. Um dos carregadores trouxera a comida do hotel, onde o resto do grupo, já almoçados, jogava conversa fora no jardim de inverno e ouvia as piadas de Marli. Voltamos devagar pelo mesmo caminho. E chegamos com sol forte de volta ao Quati.
Almoço nas pedras com o corpo banhado e relaxado
Explorando o Quati
No céu, um helicóptero sobrevoava o Roraima e eu blasfemava. Catzo! Conta a cultura Pémon que não se pode cantar lá em cima, porque atrai a chuva. Traduzindo pela ciência: a vibração da fala pode interagir com as nuvens carregados e fazer, de fato, chover. Um helicóptero teria o mesmo efeito, mas muito mais forte.
Como o tempo ainda estava bom, fiquei pulando pelas pedras em frente ao hotel, pensando na vida e escutando o som do famoso sapinho de roraima (
Oreophrynella quelchii) de longe. Até que resolvi subir a rocha, sobre o hotel, onde estavam Tensing, Antonia e alguns carregadores. Borracha me ensinou por onde tinha que escalar e fui.
O grupo estava na outra ponta, protegidos na sombra de uma pedra. Tensing andava pra lá e pra cá. “Estou procurando coisas novas”, disse. Em uma parte atrás da pedra ele apontou para os cinco tipos de musgos e líquens em um cantinho tão reduzido. É um apaixonado. Dali pudemos ver o bosque da belíssima
B. roraimae, que divide Brasil e Guiana. Vegetação e relevo pré-históricos, como aqueles dos filmes sobre o Jurássico. “Só faltam os dinossauros”, disse Tensing apontando para a paisagem.
Não é de estranhar que foi ali, do alto do Roraima, que o escocês Arthur Conan Doyle buscou inspirações para escrever seu best-seller
O Mundo Perdido, no início do século 20. Do livro surgiu a premiada franquia
Jurassic Park, do diretor Steven Spielber. A visão real lembra muito o mundo imaginário do cinema. Tensing estava certo. Só faltavam os dinossauros.
Alô, Roraiminha!
Descemos de lá. Era o fim do descanso dos guias e Tensing,
con su permiso, precisava cuidar da logística. Não ficaria muito tempo parado, já que Borracha surgiria novamente fazendo propaganda do Roraiminha. A janela estava aberta, dizia ele. Será? Fim de tarde, fomos mais uma vez conferir o mirante brasileiro. Foi emocionante.
O Roraiminha brota no meio da floresta brasileira
Confesso que dei um suspiro de choro, agradecendo pelo presente que o tepui nos dava. A janela estava completamente aberta e mostrava a floresta amazônica sobre um ângulo magnífico. Do lado esquerdo, o Roraiminha aparecia tímido com algumas nuvens brancas sobre a cachola.
O Fantasma do Monte Roraima mede forças com a paisagem
O pessoal apareceu tirando fotos e fui me juntar ao Andri, que estava mais isolado. Gosto de fotografia, mas naquele momento queria apenas curtir a paisagem. Tensing tinha dito certa vez que a melhor máquina fotográfica é nossa memória. Preferia deixar bem registrado neste filme eterno, antes de apontar a objetiva.
Veridiana queria fazer a clássica foto pulando. Pisou em falso e bateu a canela
Com o sol em sua descida final, nos aprontamos para voltar para o hotel. Antes, o pessoal queria tirar mais algumas fotos, como aquelas pulando com o horizonte iluminado ao fundo. Na "Linha Veridiana", a maringaense também quis fazer a foto e, ao pular, pisou em falso e bateu forte a perna na pedra. Os galos levantaram rápido na canela da menina e ela ficou de bico pelo resto da noite.
Outra foto clássica do grupo. Vencedores
Um outro grupo havia chegada ao hotel e usava a cozinha quando chegamos. Cruzaríamos mais vezes com o pessoal, quatro brasileiros e duas venezuelanas que eram levados por uma empresa da Venezuela. Acostumados a dormir às 19h30, tivemos que ver o outro grupo madrugar até 21h, tarde demais para nosso padrão.
Causos do Borracha
Como não tinha como dormir, me juntei à turma do Borracha, para escutar as histórias do falante guia brasileiro, cheio de brincadeiras e com seu idioma próprio, o borrachês. Ele diz, por exemplo, que a gente chegaria a tal local “na faixa etária” de três da tarde. Em referência a uma colega que ainda estava invicta, ou seja, não tinha usado até então o esqueminha do banheiro, Borracha contou a história contrária, a de Pedro Cagão, um descendente de japonês que teve problemas estomacais durante toda a viagem. Em resumo: não tinha roupa do rapaz que não estava cagada. Nem o companheiro de barraca aguentava mais o cheiro.
O contador de histórias Everaldo, vulgo Borracha, no nascer do sol, no Roraiminha
Um pouco mais fantasiosa, mas não menos engraçada, é a história do Pinguno da Montanha, apelido que Borracha tinha dado a Roger, um jovem carregador venezuelano, responsável pela montagem das barracas. Segundo Borracha, Pinguno é o último exemplar vivo da espécie. “Era una pareja, mas a mulher caiu da
Janela [uma das vistas do Roraima] e até hoje o Pinguno procura por ela. Quando ele demora para chegar é porque ficou pra trás, chorando de saudades da amada”. Roger, ao ouvir a história, só ria.
Gabriel, o Poroto, também era vítima das brincadeiras de Borracha. Mas, mais ligeiro, o caraquenho havia aprendido o termo “galinha choca” e imitava o tagarelar matinal de Borracha, quando queria acordar o pessoal. Parecia uma galinha.
Roger com parte da infantaria. O montador de barracas era alvo constante das piadas de Borracha
Borracha ficaria contando histórias por toda a noite, mas passava das 21h, era o tempo limite para o outro grupo dormir e fui fazer o mesmo. Estávamos no auge de nossa viagem e no outro dia começava a volta.
Dicas deste post
- Tenha uma boa mochila de ataque (entre 20 e 40 litros) para os dias de folga (como a ida ao Lago Gladys). Leve sabonete, xampu (biodegradáveis) e toalha para o lago. Um chinelo também.
- Cobre do guia para ver o mirante brasileiro, do hotel Quati, pela manhã. Se o tempo estiver bom, você pode acordar mais cedo e ver o sol nascer lá.
- Aproveite a parada no Quati para secar as roupas. Se você não estiver bem fisicamente, aproveite para ficar descansando no hotel (embora, eu não perderia o Lago Gladys se fosse você).
- A caminhada para o Lago é uma boa hora para carregar um caderninho e anotar as informações sobre a flora local (cobre isso do guia). faça uma coleção de fotos das plantas.
- Capriche no taren!